segunda-feira, 26 de abril de 2010

Bárbaro (Texto-convite para o próximo show da Trupe, dia 7 de maio, lançamento do novo CD, "Bárbaro").

É preciso quebrar as paredes da consciência, e também da nossa casa. Gritar. Chutar mesas e baldes que estiverem pela frente. Comunicar-se com os mortos, para tirar-lhes tudo que tiverem de bom. Falar em línguas, a exemplo dos pais-de-santo, e também dos doentes mentais. Isso porque a consciência anda matando. Disparos silenciosos de metralhadora giratória pelas ruas de São Paulo. Quem sabe por onde andam esses assassinos? Esses matadores, derramando sangue de corpos frágeis, de carnes perdidas, ambulantes, adolescentes trombando, e caindo, nas esquinas; alguém sabe quem está no gatilho? Assassinos filhos de uma puta! Perfurando corpos o tempo inteiro, provocando estragos irrecuperáveis no meio da multidão. Mas há quem se levante, aqui e ali, embora haja pessoas gravemente feridas que agonizam à espera da morte. Sim, há quem grite, e se erga, vamos, há quem diga, há quem diga na linguagem do corpo, linguagem-corpo, vocábulos que tudo significam mas não significam nada, glossolalias, como ouvi o Willer dizer nesta semana, uma linguagem foda que recusa toda espécie de linguagem, vocês têm que ver isso! Na verdade, ouvir. Esses que se levantam, que se rebelam, que a princípio mortos-vivos, depois em alerta, só falam glossolalias, a linguagem-invenção, à maneira de Kerouac, “Uivo” de Ginsberg, a fala dos doentes mentais, do milagre de Pentecostes – revelações divinas, incompreensíveis –, dos pais-de-santo do candomblé (da mãe Dô), a língua dos mortos, desconhecida. Quem se levanta não fala, na realidade urra! UUUU! ÊÊÊÊÊ! AAAA! O sentido é o de menos. Porque o ataque é o mais importante. O Guto é gutural, nunca havia reparado... Por falar nisso, gostei da peça do Guto e da Asto: pouco verbo; no geral, uivos, urros, upas, ulas, nos encontros, nos desenlaces, do cotidiano. “A hora em que não sabíamos nada uns dos outros”, em pleno Parque da Luz. Linguagem dos bêbados. Sim, prefiro a linguagem dos bêbados! Explosão do significado, que atira estilhaços cortantes para tudo quanto é lado, um horror de estouro: oh! Quebremos! Plum! Plá! Plá quem diz muito é o Galo. Plá! Então está feito. O ganido do Capita através do telefone: IIIIIIII! Cuidado, está no cio! Aliás, espero que o sexo role solto no próximo dia 7, e gritos de prazer sejam ouvidos pelo salão, além da música cheia de alma da Trupe. Trupe dos Prazeres. Não precisa verbalizar. Só os estalos dos beijos, bicho! Ou sentir o abraço de almofada do Gom Gom. Can! Can can! Can can can! Ah! Viu só, Gom Gom? A nossa geração arrastando-se semi-defunta pelas ruas e nós aqui, na maior das viagens, falando coisas à toa. Tudo bobagem. Vamos à mesa? Comer os mortos. A Tropicália. Comer um lanche cheio de sangue de alegria e vida. Quem vem? A Trupe está convidando. Fagocitose. Células no processo de envolvimento de partículas sólidas. Nós comendo. Fagocitando. Comendo Itamar, Chico, Caetano. Bem no rabo. Comendo o Piva também. A nossa geração precisa se alimentar melhor. Passa o dia todo perambulando na Paulista, de barriga vazia, à procura de emprego, ou seguindo ordens. Rimbaud. Artaud. E sobretudo o Oswald, que foi quem trouxe esse papo de canibalismo aqui pro Brasil. Façamos carnaval com os vivos! Levantando defunto! Felipinho Caos e seu baixo, Rafinha e Guto ribombando, bombas pisadas, Bastos e suas ondas elétricas orgásticas, piso partido, pá pá pá pá... Um fogueteiro só declamado pela Ciça, em transe, quebrando as paredes. A Leila ajudando, com sua marreta infernal. E o Cabelinho, enquanto isso, chacoalhando o bombril, ao mesmo tempo em que a Julia vai abrindo sua bocona punk rock, putz!, maior grito, engolindo as almas dos garotinhos da primeira fileira! Vai! Vamos lanchar antes que tudo apodreça. Bárbaro. Sair do armário. Fugir de casa. Quebrar as paredes. O caralho. Bárbaro. Sempre é bom. Senão embolora, como dizia o Leminski, arauto da desordem. Vamos à mesa! Seguindo os sopros do Mumu e do Ray, indicando o caminho. Vamos enquanto é tempo. E nos encontramos no dia 7.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

A greve

Estou com vocês, companheiros da Carlsberg! Uma voz levanta-se aqui do meio da América Latina em seu apoio; um apoio incondicional. Certamente não sou o único simpatizante de sua causa. Boêmios e desregrados existem aos montes, ainda bem. Por mais que nos ataquem, resistimos. Saibam, companheiros da Carlsberg, que a bandeira de luta que agora vocês estão erguendo é uma bandeira internacional. Não se sintam sós. Que esta crônica atravesse os mares e os encontre aí na Dinamarca ainda dispostos e empenhados a prosseguir nessa caminhada tão justa.
Acompanho os acontecimentos pela televisão e internet. Na semana passada, a notícia de que trabalhadores da quarta maior cervejaria do mundo, a Carlsberg, haviam cruzado os braços por falta de cerveja me chamou a atenção. Nunca havia lido uma notícia dessas. Professores paulistas em passeata por reajuste salarial: justo. Trabalhadores sem-terra marchando por rodovias: têm o meu apoio. Agora funcionários de cervejaria parando porque não podem mais consumir cerveja durante o expediente é uma luta completamente inusitada, mas não por isso menos justa. Trata-se, na Dinamarca, de uma questão cultural. Lá se bebe cerveja o dia inteiro e em qualquer lugar. Antes do dia 1º de abril, havia geladeiras espalhadas pela fábrica de onde os trabalhadores podiam retirar à vontade água, refrigerante e cerveja. É um direito centenário dos funcionários da Carlsberg beber cerveja enquanto trabalham, contanto que não fiquem embriagados. “Mas os tempos mudaram”, disse o porta-voz da cervejaria, Jens Bekke, ao jornal The Sun. Ele argumenta que a Carlsberg precisa adotar uma política de álcool que seja aceita pela sociedade, e que permitir o consumo de cerveja durante o expediente faz com que trabalhadores se tornem improdutivos e estejam sujeitos a sofrer acidentes. O próprio Bekke, no entanto, reconhece que historicamente se verifica que os acidentes relacionados ao consumo de álcool na empresa são quase zero. E um trabalhador entrevistado pelo The Sun afirmou que é raro ver alguém trabalhando bêbado, no máximo se ouvem assovios ou alguém cantarolando enquanto descarrega os fardos de bebida. Mesmo assim, resolveu-se proibir o consumo de cerveja, até porque essa é uma política que vem sendo adotada em todas as grandes cervejarias europeias em que o consumo por parte dos funcionários ainda era permitida. Resultado: todas as garrafas de cerveja, a partir do dia 1º de abril, foram retiradas das geladeiras, e o seu consumo de agora em diante ficou restrito somente ao horário de almoço.
“Temos que parar de trabalhar”, argumenta Dennis Onsvig, representante do sindicato dos trabalhadores do armazém da empresa, ao periódico The Times, “porque a gerência da Carlsberg violou o acordo de negociação, mudando a política sem o nosso consentimento”. Na quarta-feira da semana passada, 500 funcionários, entre engarrafadores, embaladores e caldeireiros resolveram paralisar suas atividades. Mais 250 aderiram na quinta, inclusive os motoristas, que, pelo fato de não almoçarem frequentemente na cantina da empresa (onde ainda se pode tomar cerveja), não perderam totalmente o direito, e ainda têm autorização para levar em suas viagens 3 garrafas por dia. O único problema para os motoristas é que agora só podem subir na boleia do caminhão se passarem pelo teste de alcoolemia – o chamado bafômetro, que virou moda aqui no Brasil.
A greve foi suspensa na sexta-feira porque a direção da Carlsberg aceitou negociar. E se espera que nas próximas semanas o impasse seja resolvido.
Também espero que a disputa termine, mas em favor dos trabalhadores da Carlsberg. Que eles readquiram o direito de beber cerveja durante o expediente. Ora, se o próprio representante da empresa admitiu que praticamente não há na história da cervejaria registros de incidentes provocados pelo consumo do álcool, por que então proibir? Deixem os funcionários à vontade! Durante um século souberam beber com moderação. Durante um século tomaram sua cerveja sem causar grandes problemas. Tenho certeza de que o próprio sindicato devia orientar os trabalhadores a não exagerar, evitar ao máximo qualquer tipo de excesso que pudesse dar motivo a ações políticas proibitivas, como a que vem sendo adotada agora. Por que foram mexer com quem estava quieto, bebendo sua cerveja tranquilamente, cantarolando e assoviando pelos corredores da fábrica? Agora sim os empresários arrumaram um problema. Se as negociações que estão acontecendo não favorecerem os hábitos etílicos dos funcionários, é certo que uma nova paralisação vai acontecer, e como consequência atrasos no abastecimento e prejuízos para a Carlsberg.
Há alguns meses escrevi uma crônica sobre um tema bastante controverso aqui no Brasil,“É proibido fumar”, em que saí em defesa dos boêmios, frente aos ataques que vêm sofrendo recentemente. Não se pode mais fumar, nem frequentar bares longe de casa. De tão eficaz, a conscientização veiculada pelos meios de comunicação vai transformando as pessoas em policiais à paisana, censores misturados às pessoas comuns. Apresento, na crônica que escrevi no fim do ano passado, alternativas plausíveis à proibição do cigarro em lugares públicos e à tal da lei seca, extremamente rigorosa, no meu modo de ver. Entre outras coisas, defendo que o transporte público funcionando durante toda a madrugada é o mínimo que se espera numa cidade do tamanho de São Paulo, e uma medida viável na tentativa de solucionar o problema entre bebida e volante.
Para mim é certo que as proibições daqui têm a ver com as que vêm revoltando os trabalhadores na Dinamarca. A vontade dos empresários é a mesma dos políticos, que os cidadãos sejam comportados, sóbrios e produtivos. E como não compactuo com essa caretice que vem se tornando geral, declaro minha solidariedade a vocês, trabalhadores dinamarqueses, que sem querer acabaram dando uma ótima ideia para nós, brasileiros. Por que não meter um pouco de cachaça, nossa bebida tradicional (um litro por dia, que seja, só para degustar, ao lado das garrafas térmicas de café) nas empresas e repartições públicas deste país? Quem sabe assim o serviço não fique mais descontraído e, como ocorria na Carlsberg, não seja possível escutar assovios e canções vindos de algum funcionário caminhando por corredores geralmente tão tediosos?

segunda-feira, 29 de março de 2010

Família

Amo minha família. E certamente a maioria das pessoas também ama a sua, sobretudo a chamada família nuclear. De um modo geral, pai, mãe e filhos se amam.
Acontece que ando farto – ou melhor, de saco cheio –, não da minha família, nem de alguma outra em específico, mas do conceito de família construído pela sociedade em que vivemos.
Isso porque, como alguns amigos devem saber, estou procurando um lugar para morar, e, após alguns meses de busca, ainda não consegui encontrá-lo, e o principal motivo da minha desgraça é a ideia de família que habita a cabeça das pessoas.
No final do ano passado, escrevi uma crônica inspirado pelo verso do Leminski “Quem vai embora não embolora”. Mas não imaginava, nessa época, o quão difícil seria levar a cabo esse projeto. Quero ir embora, tenho condições financeiras para fazê-lo, minha mãe já se conformou com a notícia, meu pai prometeu apoio, porém não consigo me mudar. Estou embolorando, caro Leminski, e o que posso fazer?
Constituir uma família. Se tivesse esposa e filhos, certamente já teria conseguido alugar um imóvel. Todos, proprietários, corretores, gerentes de imobiliárias, fariam questão de me ajudar, facilitar ao máximo os procedimentos burocráticos a fim de fechar negócio imediatamente. Acontece que não vou constituir família, não pretendo fazê-lo tão cedo, talvez nunca o faça. Aliás, ninguém tem nada com isso. Minhas escolhas sou eu que faço, na minha vida não preciso de ninguém para meter o dedo! Mas sempre que ligo para uma imobiliária para obter informações a respeito de um imóvel que está para alugar, tenho de dar satisfações sobre a minha vida. Não me justifico nem para o meu pai, que dirá para um corretor de imóveis!
Qual a sua renda? Tem carteira assinada? Faz o que mesmo?... Ah. E quanto está disposto a gastar com o aluguel? Por esse preço está difícil, para não dizer impossível... E o senhor pretende se mudar com a família?
Eis que a pergunta é feita, invariavelmente, mudando apenas a ordem em que aparece, de corretor para corretor. Se vou constituir família... E o que eles têm a ver com isso? Que problema tem em não querer constituir família? Não, não vou me mudar com a família. Pelo contrário, vou deixar a que tenho para trás.
O Gusta, o Cabelo, a Lia, o PR e eu estamos juntos nesse projeto há 3 meses, e ainda não conseguimos fechar negócio. Só aos poucos fomos descobrindo a principal razão do nosso infortúnio. Uma corretora um dia nos disse, numa visita que fizemos a um apartamento nas Perdizes, que os estudantes estavam muito malvistos na região; costumam gerar problemas no condomínio, atormentar a vizinhança, o que no limite acaba virando caso de polícia, uma baita dor de cabeça para o proprietário do imóvel!...
Ora, não somos estudantes: o Gusta e o Cabelo são pesquisadores da área de Ciências Sociais, a Lia já trabalha, o PR é professor e eu, formado, estou cursando a licenciatura e dando aulas também. Mas não adianta dizer que não é estudante quando se tem cara de estudante. Notei, nessa busca por um aluguel, que “estudante” é uma categoria bem ampla, que não abarca somente aqueles que estão no Ensino Básico ou cursando o Superior, como geralmente se pensa. “Estudante” tornou-se, ao menos no meio imobiliário, sinônimo de “jovem que ainda não tem uma vida economicamente estável”; e, o que é pior, “que ainda não constituiu família”.
Este é ponto principal: a família.
Quem não é de família gosta de festas, noitadas, não tem parceiro fixo, não tem responsabilidade, faz barulho, fuma maconha, atrai a atenção da polícia, é baderneiro, enche o saco, trepa alto, arrota na escada, rabisca no elevador, e tudo o que se pode imaginar de pior em um condomínio formado por famílias de bem. Além disso, quem não constituiu família ainda corre o risco de virar veado, e já pensou o inconveniente terrível que seria um casal de veados compartilhando o mesmo prédio com famílias de bem? Não estou exagerando. O namorado da minha mãe havia praticamente alugado seu apartamento para um homem de meia idade quando a corretora, impaciente, disse que tinha de fazer uma revelação, mas receando que por causa disso o negócio não desse certo. É que na verdade o inquilino iria dividir o apartamento com outra pessoa, um homem, seu companheiro. O namorado da minha mãe disse que para ele não haveria o menor problema. A corretora, constrangida, aliviada, mudou de assunto.
Quase fechamos negócio em janeiro, mas a proprietária – para quem não bastaram as garantias dadas por meio da documentação de fiador e locatários – achou-nos jovens demais para ocupar seu apartamento. Quem sabe não fosse o caso de abrir um processo contra ela. Pois o que aconteceria com o dono de um estabelecimento comercial (suponhamos uma loja de materiais de construção, em cuja fachada há uma placa dizendo “Aqui, vendem-se materiais de construção”); o que aconteceria com o dono dessa suposta loja se ele se recusasse a vender para quem é jovem demais, ou para quem é veado, ou para negros, ou para ex-presidiários, ou para quem não é de família?... Para mim, em ambos os casos trata-se de discriminação: tanto para quem vende mercadorias numa loja, quanto para quem põe um imóvel para alugar. Quando se quer alugar um imóvel, deve-se estar preparado para diversos tipos de constrangimento; analisa-se, primeiro, o corpo do locatário, suas roupas, de onde se apreendem inúmeras informações, inclusive sua classe social; levanta-se a ficha do locatário, para aferir se é devedor, se tudo está em dia, nos conformes, se trabalha formal ou informalmente... Tudo isso se verifica em detalhes, tendo em vista que o proprietário – este sim um vagabundo da pior espécie que não produz nada e vive de renda – quer saber se seu futuro inquilino é gente de bem.
E o que significa “ser gente de bem”? Na Sta. Cecília tive a infeliz oportunidade de ler, no hall de um edifício que fui visitar, uma placa que dizia: “Aqui só moram famílias. Por favor, respeite o ambiente familiar”. Que porcaria! Que hipocrisia! Em quantas famílias de bem há mulheres caladas, espancadas? Em quantas famílias de bem há crianças abusadas, agredidas, perseguidas e reprimidas pela autoridade incontestável do pai? Quem me responde?... Em quantas famílias ditas de bem, famílias ortodoxas, famílias ao pé da letra, cristãs, o lar para a mulher é uma prisão, e para o marido o maior tédio, e por isso tem de recorrer ao adultério? Quantas famílias não são infelizes, e poderiam ser felizes caso resolvessem pôr um termo a essa mentira?
A última corretora com que conversei me disse, em tom de confissão, que bolivianos são malvistos por proprietários do Bom Retiro – “roubam até os tacos do chão!” –, e também os coreanos – “porcos e maus pagadores!”. De jovem, “estudante”, então, se quer distância! República nem pensar!
E, por causa disso, continuamos, Gusta, Cabelo, Lia, PR e eu, procurando; ou, como diria o Leminski, embolorando.

Carlos Conte
SP 23-03-10

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Água

A água vai ser o principal motivo da eclosão da 3ª guerra mundial; não é o que dizem? Se isso vai acontecer ou não, ninguém pode dar certeza. Previsões catastróficas existem aos montes. Mas posso garantir que se isso for verdade, se de fato um dia o mundo todo estiver envolvido novamente numa grande guerra, e desta vez por causa da água, uma das primeiras batalhas ocorreu aqui em São Paulo, mais especificamente no bairro da Lapa, onde moro.
No quinto mês na nova casa, resolvi ligar para a Sabesp; as contas estavam vindo altas demais! Na outra casa, que era maior, gastávamos menos: 35, quando muito 40. Agora a conta vem marcando 50, 55, 60 reais! Esculachei pelo telefone; ora, deveriam me devolver o dinheiro!; o que estava acontecendo era um absurdo; uma residência com só duas pessoas não pode consumir 60 reais de água por mês! Mas o atendente só me falava para ter calma e me transferia para repetir toda a reclamação a outro atendente, que, por sua vez, não resolvia nada, e assim por diante. Resumindo, disseram-me que devia ter vazamento, mas, para esclarecer qualquer dúvida, trocariam em menos de uma semana o hidrômetro, popularmente conhecido como relógio de água, que mede o consumo da nossa casa. Também me recomendaram fazer o teste: logo cedo, antes de abrir qualquer torneira, aproveitando que a caixa d'água está cheia, verificar se o ponteiro do hidrômetro está girando; em caso afirmativo, não resta dúvida, há vazamento.
Fiz o teste. O relógio, durante os minutos em que fiquei agachado observando-o, não se moveu. Mesmo assim, chamei na segunda-feira um encanador, que trocou a borrachinha de todas as torneiras da casa, e ainda consertou um pequeno desajuste na descarga do banheiro principal. Pronto. Minha parte estava feita. Após alguns dias, vieram instalar o novo hidrômetro, e cheguei a acreditar, por duas semanas, que o problema estava solucionado.
Mês seguinte: 65 reais! Esbravejei novamente com uma atendente da Sabesp, mas ela me disse que, tendo sido trocado o hidrômetro, nada poderia ser feito da parte deles; o problema estava dentro de casa. Por acaso tínhamos aumentado o consumo? Não. Tínhamos trocado a água da piscina? Que piscina?! Estávamos recebendo muitas visitas em casa? Não que eu me lembre... Não, claro que não! Estava tudo dentro do normal. Fiquei perplexo com aquele interrogatório. Desliguei o telefone. Pedi água...
Naquele dia, saí de casa confuso. Será que havia vazamento debaixo do piso da sala? Dentro da parede do banheiro? Pois de algum lugar aquela água estava saindo, ainda que fosse em forma de vapor! Fechei o portão de casa e me deparei com uma cena bastante suspeita: meu vizinho, o palmeirense (o meu carma são os vizinhos palmeirenses, eles me perseguem aonde quer que eu vá), estava enchendo baldes, garrafas, além de um enorme tambor de plástico, com a água que jorrava abundante da torneira do seu quintal da frente. Parei e fiquei observando. Assim que me viu, deixou a torneira aberta e se levantou para falar comigo:
– Fala, Carlos, como é que vai? – Eu vou bem, e o senhor? – Comigo tudo ótimo! Continuei olhando aquela cena e ele percebeu o meu estranhamento. – Olha, não conta pra ninguém, essa água aqui eu pego de graça.
– Como assim você pega de graça?!
– Cara, se eu te disser você não acredita... – e se aproximou lentamente de mim, como se viesse contar um segredo. – Quando mudei pra cá, percebi que a água que sai dessa torneira aqui de fora vem direto da rua, não passa pelo relógio da minha casa... Deve ser mutreta do morador antigo, não sei quem foi que fez o gato. E nem quero saber. Água pra lavar o quintal, molhar as plantas, fazer comida, a gente só pega daqui. Se você quiser pegar também, tá liberado: é só trazer um balde, dar um toque aí, e quem tiver em casa abre pra você...
Ele continuou explicando como funcionava o esquema, e as outras utilidades que dava para a água retirada ilegalmente da torneira do quintal, enquanto eu retornava calmamente à minha casa, sem dar muita bandeira, de vez em quando respondendo qualquer coisa, só para ele pensar que estava prestando atenção. Do outro lado, o barulho da água jorrando pela torneira; deste lado, o hidrômetro girando alucinadamente. O mistério, enfim, estava solucionado! A torneira do quintal do vizinho ficava no muro que divide nossas casas. Para mim, não havia nenhuma dúvida. Chamei-o para ver uma coisa do lado de cá do muro, e ele veio, deixando para trás a torneira aberta; claro, não é ele que paga!
– Quero que você me explique uma coisa, seu Manuel; como é possível não ter ninguém na minha casa e o relógio estar girando?...
– Realmente isso é muito estranho, Carlos, muito estranho... – ele falou com cara de desentendido, mas como quem está a fim de ajudar. – De duas uma: ou é vazamento ou a caixa d'água está enchendo, só pode ser isso.
– Seu Manuel, tenho quase certeza que a água que o senhor tira da torneira aí do quintal, que o senhor garante que vem direto da rua, vem da minha casa, e passa pelo relógio da minha casa, e sou eu que estou pagando por esses seus baldes todos aí fora... E vê se desliga logo essa torneira, pô! Ele ficou quieto. Voltou, fechou a torneira. Quando retornou ao meu quintal, mostrei-lhe o hidrômetro parado, o que comprovava minha suspeita.
Dia seguinte, o encanador quebrou o muro e constatou a fraude: um pedaço de cano desviava para o lado da casa do vizinho, e dava direto na torneira do seu Manuel, que me jurou por mais de uma vez que a fraude não tinha sido feita por ele, mas pelo morador antigo, este sim um verdadeiro larápio. Imagine que ele faria uma coisa como essa! Pediu desculpas, falou que não precisava roubar água da casa de ninguém, e que não sabia onde enfiar a cara... Acreditei na sua honestidade. Até fiquei com pena. Mas disse que teria de me pagar pelo menos metade do valor das contas da Sabesp referentes aos 6 meses em que estava morando ali. Como não tinha todas as contas, ficou acordado que me desse 25 por mês, 150 reais ao todo, além de pagar o encanador e todos os custos com o material usado para desfazer aquela fraude.

Carlos Conte
São Paulo, 3 de novembro de 2009.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Primeiro beijo

Estava numa rodinha de amigos, falando sobre qualquer coisa, para tentar me esquivar do inevitável. Claro que a Roberta Fonseca já estava na festa, em algum lugar daquela casa imensa do bairro da Lapa, e não devia pensar em outra coisa a não ser no nosso beijo planejado durante a semana. Suas amigas haviam cuidado de tudo, como se de fato fossem elas as beneficiárias da transação. Encarregaram-se de trazer e levar bilhetinhos, recados, palavras dispersas, de modo que Roberta Fonseca e eu, os maiores interessados no plano, não tivemos trabalho algum. Apenas nos cumprimentávamos de longe, na entrada ou na saída da escola, o que bastava para selar o acordo. Na festa do Armando, no próximo sábado, iríamos ficar.
Era impossível disfarçar o nervosismo, afinal nunca havia feito nada parecido antes. Como era uma festa de pré-adolescentes, organizada pelos pais do aniversariante, só era servida bebida alcoólica aos adultos, e por isso tive de me contentar em encher a cara de Coca-Cola, para ver se espantava a ansiedade. Que nada. Estava tremendo. Falávamos de futebol, de video-game, e qualquer outro assunto de interesse de um pré-adolescente, mas era óbvio que não conseguia pensar em outra coisa que não fosse a Roberta Fonseca e nosso plano fatal. Aliás, quando o assunto da nossa roda de conversa enfim chegou ao evento amoroso da noite, que de tão anunciado e comentado era de conhecimento geral, meus amigos não conseguiram esconder a inveja que sentiam de mim. É que Roberta Fonseca já tinha peitinhos. Uma pré-adolescente em pleno processo de desenvolvimento, em cujo corpinho era possível vislumbrar uma mulher maravilhosa. Usava sutiã há mais tempo que as outras. Falava de meninos sem qualquer vergonha. Era, também, a mais experiente de todas, mas raramente se abria para um menino da mesma idade. Ao contrário, gabava-se de só ficar com garotos mais velhos, estes sim homens de verdade, espertos, fortes e maduros. Acontece que havia resolvido, inesperadamente, abrir uma exceção. Sim, fui pego de surpresa, e senti o maior frio na barriga de que me lembro, quando duas de suas amigas, na hora do recreio, encostaram-se de maneira sincronizada na grade da quadra de futebol e ali ficaram esperando a partida terminar, até que pudessem me chamar de canto para passar uma mensagem da Roberta Fonseca: ela estava gostando de mim e queria ficar comigo na festa do Armando. Nem tive tempo de reagir. As duas se viraram e foram embora. Estava determinado: Roberta Fonseca e eu iríamos nos beijar na festa do Armando, isso estava decidido, e não tinha discussão. Sabia que era uma oportunidade única, e que todos os meus colegas me invejariam por causa disso. Mas sabia também que caso refugasse, desse para trás, meu nome ficaria sujo por tempo indefinido em todos os recantos da escola. Não disse sim, mas não precisava fazê-lo. Minha única opção era ir em frente.
Roberta Fonseca era boa demais para se misturar aos moleques. Do alto de sua popularidade, mandava as amigas, duas, três, quantas fosse necessário, enviarem seus curtos mas incisivos recadinhos. Logo após o parabéns, quando todo mundo estiver roubando brigadeiros e esperando a mãe do aniversariante servir o bolo, quando todos estiverem absorvidos pelas fotografias e guloseimas, ela estaria me esperando ao lado da edícula, num espaço escuro e reservado. Outra vez não me deram direito de resposta, e as amigas fizeram meia-volta para dizer a sua superiora que sim, tudo estava confirmado, na hora e no local combinados.
A casa estava bem cheia naquele começo de noite. Por isso, e também pela escuridão da pista de dança, ainda não havia visto minha futura amante, Roberta Fonseca. Só um pouco antes do parabéns ela resolveu sair do meio das amigas e mostrar-se para mim: estava uma gata, de vestido florido, sapato baixo, cabelos castanhos compridos e levemente encaracolados, olhos profundos, também castanhos, rosto bem feito, redondo, duas nádegas salientes, ainda tímidas, e duas protuberâncias na região do tórax que, espremidas no vestido, formavam um decote maliciosamente juvenil, chamando a atenção de todos os meus amigos, que, por inveja, em vez de me darem força, ficaram me jogando pressão: “Agora eu quero só ver, hein?”, “Xi, será que vai aguentar?...”, essas coisas que provavelmente eles ouviam dos garotos mais velhos da escola e agora reproduziam como se fossem os caras mais descolados e experientes do pedaço. Mas ali estávamos todos na mesma: futebol, video-game, e revista de mulher pelada. Aposto que não se sairiam melhor. E até que não estava indo mal; quando a Roberta Fonseca desfilou perto de mim pela primeira vez na noite, certamente para conferir se tudo estava mesmo de pé, se eu não iria recuar na última hora, olhei diretamente nos olhos dela, e fiz um aceno leve com a cabeça, querendo dizer que sim, e ela sumiu pela porta dos fundos da casa, acompanhada de perto pelo séquito de meninas, Brunas, Priscilas e Patrícias da vida.
Chegada a hora, fiquei distante da mesa do bolo para que pudesse sair da sala sem dificuldades assim que terminassem de cantar o parabéns. Fui ao banheiro, só para me olhar no espelho, tirar o cabelo do rosto, e olhar a condição dos meus dentes: arrependi-me de ter tomado tanta Coca-Cola quando vi que meus dentes estavam bem amarelados e minha saliva, melada, chegava a engrossar minha boca. Fiz bochecho algumas vezes. Pus na boca o halls reservado para a ocasião. E tentei me lembrar dos treinos que havia durante toda a semana no espelho do banheiro de casa: boca aberta, língua pra fora, mexendo-se de um lado para o outro, e evitar que os dentes batam nos dentes dela, ou que escape alguma mordida. Só alguns anos depois fui descobrir o prazer da mordida... Além do beijo no espelho, de sabor esquisito, também havia me preparado por meio da técnica do copo com gelo, que consiste em tentar pegar com a língua os cubos de gelo dentro do copo de requeijão. Nem me lembro com quem aprendi essas coisas.
Terminada a cantoria, saí da sala rumo ao quintal vazio, de onde se ouviam os aplausos e assovios da galera comemorando o aniversário do Armandinho. Caminhei rápido na direção da edícula, e nesse momento todos os sintomas de nervosismo e ansiedade aumentaram até um grau próximo do insuportável, as pernas bambas, a travação no peito, o frio na barriga, parecia que meus sentidos estavam todos embaralhados; precisaria falar alguma coisa? Aproximei-me do local combinado, e avistei um vulto encostado no muro dos fundos da casa; era da minha altura, não se movia, não falou nada. Cheguei mais perto, entrando também naquela imensidão escura, um espaço que sobrou entre a edícula e o muro que divide as duas casas, e me posicionei bem na frente dela. Se pudesse, retornaria à sala cheia de gente, onde me sentiria mais confortável, mas uma obrigação, um dever social, me mandava seguir adiante e beijar aquela boca de menina de 13 anos. Não dissemos nenhuma palavra. Teríamos que ser rápidos se quiséssemos continuar com aquela temível privacidade, que doía tanto no peito, como um peso, que me deixava até com falta de ar. Fechei os olhos e, não sei por qual motivo, meti as duas mãos nos seios dela, no momento em que nossos lábios se tocaram. Claro que sabia que aquilo não era permitido. O trato era beijar, não se esfregar, muito menos pegar nos peitos. Por que decidi fazer isso? Na verdade, não decidi, simplesmente fiz, por nervosismo, por audácia. “Deu branco”, como dizem, e fui direto nos peitos da Roberta Fonseca, dando tempo apenas de rolar um selinho antes do tapa que ela me deu na cara, que deixou marca. “Safado!”. Saiu dali correndo. Fiquei sozinho no escuro, com a deliciosa sensação daqueles peitinhos moles, macios, nas mãos. Pena que foi tão rápido... Um prelúdio das coisas verdadeiramente boas da vida. Depois disso, todos os moleques invejosos ficaram tirando sarro da marca vermelha no meu rosto – sinal do meu fracasso –, além de ter ficado com fama de tarado em toda a escola. Até rolaram boatos, ao longo das semanas seguintes, de que o irmão mais velho da Roberta Fonseca queria tirar satisfação comigo, o que nunca aconteceu.

São Paulo, 9 de fevereiro de 2010.
Carlos Conte

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

É proibido fumar

Estão tentando, de todas as maneiras, acabar com a boemia. Refiro-me à boemia de verdade, às viagens noturnas de bar em bar, em Pinheiros e cercanias, no centro, na Barra Funda, na Lapa, Bela Vista, seja lá onde tiver um boteco; refiro-me ao compromisso de estar acompanhado dos amigos, sem ter nenhuma conversa em especial para rolar, nenhum assunto importante a ser tratado, um encontro despreocupado, que às vezes acontece sem querer, a uma mesa de bar, ou em pé, ao balcão; refiro-me à boemia que não respeita os bons-costumes, que fala palavrão, a boemia que não conta piada de salão: “cerveja na mão, pau no cu do meu patrão”; à boemia cara-de-pau, mentirosa, verdadeira, que ocorre nas esquinas da cidade, pelas calçadas, fechando estabelecimentos uns atrás dos outros, até cair em algum pedaço maldito, às oito da manhã, hora de voltar pra casa; refiro-me, vocês sabem, ao hábito de sair para beber, encontrar camaradas, mulheres, mas também ao hábito das mulheres encontrarem suas amigas, e paquerarem os rapazes, ou paquerarem as próprias amigas e os rapazes almejarem os amigos, tudo pode, afinal não me refiro à boemia machista de tempos atrás, mas a sua versão atual, mais democrática; de qualquer maneira, sendo do sexo masculino ou feminino o andarilho etílico da madrugada, a boemia a que me refiro, quando é verdadeira, verdadeira mesmo, é extraconjugal, avessa a preconceitos mofados, não gosta de compromisso, não é careta, é adúltera, é chegada a uma pulada de cerca; falo da boemia pobre, rica, mas que, pelos milagres da noite, acaba confundindo tudo isso, e rico bebe 51, e pobre, de vez em quando, beberica um uísque. Bom, vocês sabem do que eu estou falando, nada desse lance quadrado, puritano, que vem ocorrendo no estado de São Paulo e principalmente na capital.
Outro dia fui com um amigo comprar ingredientes para um almoço no Mercadão. Além da decepção de não encontrar verduras e legumes em barraca alguma (já que o turismo está transformando o lugar em ponto quase exclusivo de venda de sanduíche de mortadela e bolinho de bacalhau, cada dia mais caro), espantei-me com um fato extraordinário. Já estávamos saindo, resignados, quando resolvi perguntar ao dono de uma banca de frutas (cerejas e morangos para inglês ver) se ele sabia de alguém que por acaso vendesse cogumelos frescos.
– Não, rapazinho, não pode mais. Colocaram até placa avisando.
– O que, não pode mais vender champinhom?!
– Não, não foi isso que eu falei.
– Também não foi isso que eu perguntei!
Era o início do que se chama por aí de conversa de louco, porque ninguém se entende, cada um achando que o assunto é um, e não outro. Tudo muito louco.
– Senhor, eu estou perguntando se o senhor sabe de alguém que vende champinhom fresco aqui no mercado; o senhor sabe ou proibiram mesmo?
Cheguei a pensar, por alguns segundos, nesta possibilidade: devido a alguns casos sérios de intoxicação, a secretaria da saúde proibiu a venda de champinhons frescos, e espalhou cartazes pelos supermercados, mercadinhos e feiras, a fim de proteger a população e evitar um problema maior de saúde pública. Mas como isso parecia improvável, deixei essa ideia de lado e repeti ao vendedor minha pergunta do champinhom.
– Ah, você quer saber do champinhom! – ele disse, levando as duas mãos ao rosto de tão encabulado. – Champinhom tem sim, claro que tem... Eu tinha entendido outra coisa. Achei que você tava perguntando se podia fumar aqui dentro, porque fumar não pode – e, dando risada, me explicou onde é que ficava a barraca onde se vendiam os cogumelos frescos.
Saímos de lá, meu amigo e eu, pensativos, carregando numa sacola um quilo de champinhons. Que papo estranho! Como se pode confundir cigarro com champinhom, como isso é possível? Problema sério de audição, certamente, para cometer um equívoco tão grave. Trata-se de uma pessoa idosa que ouve muito mal. Mas meu amigo, metido a sociólogo, veio com uma explicação bastante convincente, que se soma, com certeza, ao problema de audição: estão metendo na cabeça das pessoas que não pode fumar, não pode fumar, em propagandas, com o Dráuzio Varella, em programas de rádio e televisão, em jornais impressos, por meio de grupos itinerantes de orientadores que percorrem estabelecimentos, estão conscientizando com tanta eficácia que, além de muito bem conscientizadas, as pessoas estão virando polícia, delatando, censurando, reprimindo. Inculcaram tão bem na mente daquele feirante que é proibido fumar, que a primeira coisa que lhe ocorreu quando ele não ouviu direito o que eu lhe perguntei foi a proibição. É proibido fumar, diz o aviso que li em bares, restaurantes, padarias, pastelarias, açougues, supermercados... Trata-se de um cartaz uniformizado, cujo desenho está disponível para impressão no site do governo, em que, no centro do mapa estilizado do estado de São Paulo, um cigarro é cortado ao meio por uma tarja vermelha. Cheguei a encontrar esse aviso na entrada do estacionamento do Pão de Açúcar; detalhe: o estacionamento é descoberto! O medo da multa é tão grande que qualquer cuidado é pouco. Tem que fazer valer a lei.
Além da proibição do cigarro, não se pode mais tomar cerveja longe de casa, a não ser que se tenha motorista particular, ou 30 reais reservados para o táxi, ou ainda um amigo careta que bebe leite. Caso contrário, uma das poucas opções é o bar da esquina, a poucos metros de casa, de onde se pode voltar a pé. Ônibus de madrugada a gente sabe que não tem; estação de metrô só abre cedinho. O jeito, portanto, é beber a noite inteira até o dia clarear, quando o transporte público retorna às atividades. Mas ultimamente ando infringindo as regras, e saindo de carro. Para burlar a blitz, desenvolvemos, meus amigos e eu, o costume de enviar mensagens de celular para a galera caso haja blitz à vista: “Evitar Dr. Arnaldo com Cardeal”, ou “Não passar pela Consolação”, ou ainda “Blitz na Henrique Schaumann, cuidado!”, e por aí vai, o torpedo sendo repassado diversas vezes, de modo que na maioria dos casos não se sabe quem foi o primeiro a dar o aviso. É, a gente se vira como pode...
E assim a boemia vai dando lugar à caretice geral. Pessoas denunciando outras, fiscalizando, supervisionando. Viaturas de tocaia para multar algum trouxa desavisado. E àqueles que pensam que dá para fumar na rua, cuidado, porque tem a Lei do Psiu, que é para garantir a tranquilidade merecida de quem trabalha o dia inteiro. Outra alternativa para quem ainda não desistiu da noite é chamar a turma para beber em casa, comprar gelo, uma garrafa de Cavalo Branco, convidar as menininhas, pôr uma música no rádio, e coisa e tal, evitando todo tipo de importunação. Mas o que fazer com o vizinho, que sempre reclama quando a gente resolve armar uma festinha? Talvez o problema sejam os outros; e eu, problema para os outros. É o desafio de se viver em sociedade. E para não acharem que só desço a lenha e sou radical, apresento soluções plausíveis: que se aumente o nível alcoólico permitido para quem está ao volante (já que ninguém fica bêbado com um só copo de cerveja) e que se reinstituam as alas para fumantes nos restaurantes da cidade. Nos lugares fechados, tipo discotecas e boates, que o dono da casa se vire para reservar aos fumantes um canto, ou um salão, ou uma varanda, e está tudo certo; terminado o cigarro, ele volta pra pista comum.
Só não podem fazer o que estão fazendo. Proibindo demais. Daqui a pouco não vai mais poder beijar na boca, já pensou? Aí o jeito é largar de vez todos os vícios, abdicar das noitadas e dos divertimentos da carne, e as meninas irem ao convento, e os rapazes à vida do celibato.

Carlos Conte Neto
São Paulo, 25 de agosto de 2009.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Chicholina

Saímos do baile abraçadinhos, e da calçada ainda se ouvia a gafieira do clube de tênis. Levei-a para o carro. Ao volante, meio bêbado, disse todas as minhas vantagens, as que tenho e as que imagino que tenho. Pintei-me bem, como se fosse um artista experiente, com pincel grosso e traços precisos. E ela gostou. Perguntou-me se eu era tudo aquilo mesmo que estava falando, e respondi que tudo e mais um pouco. Ela sorriu. Chegamos em casa.
Logo que entramos, notei que estava um pouco tímida, mas a conduzi rapidamente para o quarto, onde pudesse se sentir mais à vontade, também porque fiquei com receio de acordar a minha mãe. De manhã, pensei, não vai ter jeito, não tem como escapar dos olhos da dona da casa. Mas no meu quarto, sou eu que mando. Mostrei-lhe a cama, ela deitou. Quando comecei a beijá-la de mansinho, propondo uma noite de carícias – já que estava realmente debilitado pela vodca – ela me agarrou com violência. Rolamos amassados em cima do edredom, sem tirar os sapatos e com a luz do quarto acesa. Ela me mordia como se eu fosse uma coxa de frango e me esganava como faria o Fantomas no Tedy Boy Marino, da luta-livre. Caramba, não precisa ser tão rápido, senão a gente se mata antes mesmo de tirar a roupa! Mas quem disse que ela parava: Carolina é louca. Começou a me lamber os ouvidos, mordeu a cartilagem, pensei que fosse me arrancar alguma parte. Depois veio me arranhar as costas, apertar minha bunda, minha coxa, calma lá! Aquilo parecia um tanque de guerra desgovernado em plena cidade grande, derrubando postes, cabines telefônicas, invadindo prédios públicos... O que mais faria, depois de me tapar a boca e de quase me rasgar os lábios? Nossa, aquilo para mim estava demais. Carolina, devagar... eu lhe disse. Mas acho que nem ouviu. Quis tirar minha cueca, eu recuei. Não podia com aquilo. É querer que um kart aposte corrida com um fórmula 1. Estava sedento, mole de bêbado, morrendo de preguiça, dor cabeça, com os olhos baixos, à procura de carícias suaves ou mesmo uma noite de sono. Na minha frente, uma verdadeira pantera indomável, uma selvagem, que desconhece regras, que não sabe o que é razão. Levantei-me da cama. Ela me perguntou se estava tudo bem, e eu disse que sim.
Quando me distanciei, no entanto, analisei suas qualidades: coxas grossas, belos lábios, uma graça, braços finos, dedos delicados, seios grandes. Não, não poderia perder uma oportunidade dessa! Talvez se lhe tirasse o sutiã poderia me empolgar um pouco, quem sabe... Seus seios encheram-me as mãos. Carolina é louca, mas é gostosa, pensei. Enquanto lhe acariciava os mamilos, ela aquietou-se, como se fosse atingida por um dardo tranquilizante. Agora era só descer minhas mãos ao longo de seu corpo, para o umbigo, o ventre, apalpar-lhe as virilhas... Mas quem disse que meu corpo respondia? Carolina, coitada, agora estava mansinha, do jeito que eu queria, de olhos fechados, pernas abertas, em minha própria cama, terreiro do galo. O que quero dizer é que tudo estava a meu favor: menos eu. Precisava de tesão urgentemente!
Aproveitei que ela estava de olhos fechados, disse-lhe no ouvidinho que precisava ir ao banheiro, mas que já estava de volta: um pé lá outro cá. Mas a verdade é que desejava sumir, sumir de minha própria casa. Que ideia trazer uma menina dessas para cama justo num dia em que estou bêbado e indisposto! Deveria ter sido mais humilde, pedir o telefone, depois marcar de ir ao cinema... Às vezes essas cerimônias são necessárias, pois preparam o ânimo e dão tempo para a gente esperar o momento certo. Fui apressadinho, não medi minhas condições físicas; como sempre, achei que podia tudo, e agora estava lá no quarto aquele tremendo pepino me esperando. E nada do meu subir!
Tranquei-me no banheiro e apelei para a água fria. Acorda, rapaz! Molhei o rosto, a nuca, o pescoço. Tinha alguma coisa de errado comigo? Enquanto me encarava no espelho, lembrei-me da época em que meu pai morava em casa e, uma vez, tomei um susto quando achei uma cartelinha de Viagra na gaveta do seu criado-mudo. Aquilo para mim era o fim da picada, como assim precisar de Viagra?! Na frente de uma mulher nua é impossível não sentir tesão. Muitas vezes quando estou no ônibus, ou mesmo andando na rua, só de olhar para uma bunda já fico excitado! Isso nunca havia me acontecido antes. Geralmente ocorre o contrário, em vez de brigar para ter tesão, tenho de lutar para freá-lo, senão acaba rápido demais. Essa história de brochar é coisa de velho. Desespero: Carolina tinha ficado no quarto. Precisava rapidamente de uma injeção de vida. O que fosse me faria feliz. Mas quando comecei a buscar nas gavetas do banheiro a cartelinha de Viagra – quem sabe não havia sido esquecida alguma pílula na época da separação? –, tomei vergonha na cara e dei-me dois tapas no rosto. Isso não! Tenho princípios. Mesmo que ninguém soubesse, não me perdoaria. Preferiria encarar a minha falta de tesão, o meu próprio fracasso, a tomar meia pílula que fosse.
Foi quando me lembrei das minhas revistas antigas que ficam no fundo da gaveta do armário do banheiro. Entre elas, há desde raridades, como a Playboy da Fogueteira do Maracanã, até edições recentes, como a da Tiazinha e da Mel Lisboa. Já faz um tempinho que parei de comprar essas coisas, mas nunca perdi o interesse. Minha mãe jogou a maioria fora, disse que sem vergonhice não entra em casa, mas não impediu que eu guardasse as de valor sentimental. Como um soldadinho de chumbo da infância, uma camiseta que já não serve, conservo essas revistas porque as considero recordações preciosas dos meus primeiros amores. Ah, a Chicholina! Não é da minha época, mas sempre amei a Chicholina. Ela nunca me decepcionou. Está aí uma coisa interessante: será que ainda existe essa revista da Chicholina? Procurei no meio da poeira, Vera Fischer, Sheila Carvalho, Globeleza, e eis que lá no fundo, quase esquecida, estava a minha musa dos 12 anos, a branquela mais peituda que o mundo já conheceu. Só pensava na Carolina me esperando. Folheava a revista como se voltasse uns 10 anos no tempo. Lembrava-me de tudo: da foto de apresentação, do sorriso de canto de boca, do batom cor-de-rosa. Mas o melhor estava no pôster extra do meio da revista, desses que se abrem em três. Aquilo é carne para 10 gerações, um exagero! Chicholina sempre vai ser Chicholina. Ali não tinha Viagra, nenhum artifício que me desse tanto vigor. Tirei a camiseta. Meu corpo enfim respondia!
Quando voltei ao quarto e vi Carolina de bruços, pensei que estivesse dormindo. Perguntou por que eu tinha demorado tanto, não respondi. Fechando os olhos, apalpei-lhe os seios: minha Chicholina! Pedi para ela se deitar de lado, que nem o pôster da revista; ela obedeceu. Rimos. Gritei de novo: minha Chicholina, e ela me chamou de bêbado safado.

São Paulo, 9 de julho de 2006.