terça-feira, 4 de agosto de 2009

Chicholina

Saímos do baile abraçadinhos, e da calçada ainda se ouvia a gafieira do clube de tênis. Levei-a para o carro. Ao volante, meio bêbado, disse todas as minhas vantagens, as que tenho e as que imagino que tenho. Pintei-me bem, como se fosse um artista experiente, com pincel grosso e traços precisos. E ela gostou. Perguntou-me se eu era tudo aquilo mesmo que estava falando, e respondi que tudo e mais um pouco. Ela sorriu. Chegamos em casa.
Logo que entramos, notei que estava um pouco tímida, mas a conduzi rapidamente para o quarto, onde pudesse se sentir mais à vontade, também porque fiquei com receio de acordar a minha mãe. De manhã, pensei, não vai ter jeito, não tem como escapar dos olhos da dona da casa. Mas no meu quarto, sou eu que mando. Mostrei-lhe a cama, ela deitou. Quando comecei a beijá-la de mansinho, propondo uma noite de carícias – já que estava realmente debilitado pela vodca – ela me agarrou com violência. Rolamos amassados em cima do edredom, sem tirar os sapatos e com a luz do quarto acesa. Ela me mordia como se eu fosse uma coxa de frango e me esganava como faria o Fantomas no Tedy Boy Marino, da luta-livre. Caramba, não precisa ser tão rápido, senão a gente se mata antes mesmo de tirar a roupa! Mas quem disse que ela parava: Carolina é louca. Começou a me lamber os ouvidos, mordeu a cartilagem, pensei que fosse me arrancar alguma parte. Depois veio me arranhar as costas, apertar minha bunda, minha coxa, calma lá! Aquilo parecia um tanque de guerra desgovernado em plena cidade grande, derrubando postes, cabines telefônicas, invadindo prédios públicos... O que mais faria, depois de me tapar a boca e de quase me rasgar os lábios? Nossa, aquilo para mim estava demais. Carolina, devagar... eu lhe disse. Mas acho que nem ouviu. Quis tirar minha cueca, eu recuei. Não podia com aquilo. É querer que um kart aposte corrida com um fórmula 1. Estava sedento, mole de bêbado, morrendo de preguiça, dor cabeça, com os olhos baixos, à procura de carícias suaves ou mesmo uma noite de sono. Na minha frente, uma verdadeira pantera indomável, uma selvagem, que desconhece regras, que não sabe o que é razão. Levantei-me da cama. Ela me perguntou se estava tudo bem, e eu disse que sim.
Quando me distanciei, no entanto, analisei suas qualidades: coxas grossas, belos lábios, uma graça, braços finos, dedos delicados, seios grandes. Não, não poderia perder uma oportunidade dessa! Talvez se lhe tirasse o sutiã poderia me empolgar um pouco, quem sabe... Seus seios encheram-me as mãos. Carolina é louca, mas é gostosa, pensei. Enquanto lhe acariciava os mamilos, ela aquietou-se, como se fosse atingida por um dardo tranquilizante. Agora era só descer minhas mãos ao longo de seu corpo, para o umbigo, o ventre, apalpar-lhe as virilhas... Mas quem disse que meu corpo respondia? Carolina, coitada, agora estava mansinha, do jeito que eu queria, de olhos fechados, pernas abertas, em minha própria cama, terreiro do galo. O que quero dizer é que tudo estava a meu favor: menos eu. Precisava de tesão urgentemente!
Aproveitei que ela estava de olhos fechados, disse-lhe no ouvidinho que precisava ir ao banheiro, mas que já estava de volta: um pé lá outro cá. Mas a verdade é que desejava sumir, sumir de minha própria casa. Que ideia trazer uma menina dessas para cama justo num dia em que estou bêbado e indisposto! Deveria ter sido mais humilde, pedir o telefone, depois marcar de ir ao cinema... Às vezes essas cerimônias são necessárias, pois preparam o ânimo e dão tempo para a gente esperar o momento certo. Fui apressadinho, não medi minhas condições físicas; como sempre, achei que podia tudo, e agora estava lá no quarto aquele tremendo pepino me esperando. E nada do meu subir!
Tranquei-me no banheiro e apelei para a água fria. Acorda, rapaz! Molhei o rosto, a nuca, o pescoço. Tinha alguma coisa de errado comigo? Enquanto me encarava no espelho, lembrei-me da época em que meu pai morava em casa e, uma vez, tomei um susto quando achei uma cartelinha de Viagra na gaveta do seu criado-mudo. Aquilo para mim era o fim da picada, como assim precisar de Viagra?! Na frente de uma mulher nua é impossível não sentir tesão. Muitas vezes quando estou no ônibus, ou mesmo andando na rua, só de olhar para uma bunda já fico excitado! Isso nunca havia me acontecido antes. Geralmente ocorre o contrário, em vez de brigar para ter tesão, tenho de lutar para freá-lo, senão acaba rápido demais. Essa história de brochar é coisa de velho. Desespero: Carolina tinha ficado no quarto. Precisava rapidamente de uma injeção de vida. O que fosse me faria feliz. Mas quando comecei a buscar nas gavetas do banheiro a cartelinha de Viagra – quem sabe não havia sido esquecida alguma pílula na época da separação? –, tomei vergonha na cara e dei-me dois tapas no rosto. Isso não! Tenho princípios. Mesmo que ninguém soubesse, não me perdoaria. Preferiria encarar a minha falta de tesão, o meu próprio fracasso, a tomar meia pílula que fosse.
Foi quando me lembrei das minhas revistas antigas que ficam no fundo da gaveta do armário do banheiro. Entre elas, há desde raridades, como a Playboy da Fogueteira do Maracanã, até edições recentes, como a da Tiazinha e da Mel Lisboa. Já faz um tempinho que parei de comprar essas coisas, mas nunca perdi o interesse. Minha mãe jogou a maioria fora, disse que sem vergonhice não entra em casa, mas não impediu que eu guardasse as de valor sentimental. Como um soldadinho de chumbo da infância, uma camiseta que já não serve, conservo essas revistas porque as considero recordações preciosas dos meus primeiros amores. Ah, a Chicholina! Não é da minha época, mas sempre amei a Chicholina. Ela nunca me decepcionou. Está aí uma coisa interessante: será que ainda existe essa revista da Chicholina? Procurei no meio da poeira, Vera Fischer, Sheila Carvalho, Globeleza, e eis que lá no fundo, quase esquecida, estava a minha musa dos 12 anos, a branquela mais peituda que o mundo já conheceu. Só pensava na Carolina me esperando. Folheava a revista como se voltasse uns 10 anos no tempo. Lembrava-me de tudo: da foto de apresentação, do sorriso de canto de boca, do batom cor-de-rosa. Mas o melhor estava no pôster extra do meio da revista, desses que se abrem em três. Aquilo é carne para 10 gerações, um exagero! Chicholina sempre vai ser Chicholina. Ali não tinha Viagra, nenhum artifício que me desse tanto vigor. Tirei a camiseta. Meu corpo enfim respondia!
Quando voltei ao quarto e vi Carolina de bruços, pensei que estivesse dormindo. Perguntou por que eu tinha demorado tanto, não respondi. Fechando os olhos, apalpei-lhe os seios: minha Chicholina! Pedi para ela se deitar de lado, que nem o pôster da revista; ela obedeceu. Rimos. Gritei de novo: minha Chicholina, e ela me chamou de bêbado safado.

São Paulo, 9 de julho de 2006.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Meditações sobre o Rio Pinheiros

Em cima da ponte, cozinhando ao sol do meio-dia, as pessoas esperavam. Imaginavam. Só aceitariam ir embora dali se tivessem certeza: os bombeiros encontrariam alguma coisa? Espremiam-se, inquietos, no parapeito da ponte, uma grade de mais ou menos um metro de cor verde, de onde se via praticamente nada. De fato, era difícil ver alguma coisa daquela ponte. Alguns tentavam se equilibrar na ponta dos pés; outros chegavam a se debruçar no peitoril, pondo metade do corpo pra fora. Diziam que o melhor lugar era lá embaixo, na beira do rio, mas já fazia alguns minutos que a polícia havia impedido o acesso. Tinha gente afirmando ter visto tudo na hora:
– Foi rápido: olhou pros dois lados e pulou...
– Quem? Os dois?
– Não, só um. O outro já tinha ido.
– E você fez o quê?
– Nada, vai fazer o quê?... E o pior é que o primeiro errou a mira: caiu fora do rio!
– E o outro?
– Esse caiu na água, bem no meio, deu até pra ouvir o barulho...
– E era novo?
– Qual?
– Sei lá, o que você viu...
– Era novo sim.
– Novo quanto?...
– Entre 30 e 35, eu acho. Tava de calça jeans e camisa branca.
– E foram lá pra baixo...
– Foram. Infelizmente.
– Isso aí é depressão, meu. Deve ter batido um desespero ferrado pro cara tomar coragem de fazer uma bobagem dessas.
– Às vezes é porque tá desempregado.
– Ou porque tomou chifre da mulher.
– Que nada! Dois chifrudos de uma vez só?!
– Eu não duvido não... Tá virando a coisa mais normal. Lá na vila mesmo, esses dias, teve um que pôs a mulher pra fora porque descobriu que tava sendo traído.
– Quem?
– O Valter, irmão do Vander, filho do Juca, marceneiro...
– Não conheço.
– Claro que cê conhece, meu!
Enquanto isso, mais uma ambulância do resgate aproximava-se do local. O barulho das sirenes e a movimentação crescente dos bombeiros lá embaixo despertaram novamente a atenção de todos. E ficamos em silêncio. Os carros diminuíam a velocidade ao ver aquele povo aglomerado na ponte. Devido ao calor, o rio exalava seu cheiro. Um cheiro úmido, cansado, escuro. Cheiro industrial. Cheiro de gente, coisa de todos nós que ali esperávamos. Aquilo é nosso, aceitemos ou não. Em baixa velocidade, carros dos mais diversos passavam ao nosso lado, já formando fila, certamente trazendo consequências ao trânsito em outras ruas. Nós, o pardo aglomerado, assistíamos atentos aos bombeiros trabalhando de barco na água lodosa. Tinha parado no meio do caminho para acompanhar, junto de centenas de curiosos, a aflitiva ação do resgate cortando as águas de lado a lado. Víamos, na água preta, quase água, o reflexo de nós mesmos, parados, debruçados sobre o rio, que não tem culpa, mas sofre. Já está acostumado a ser depósito daquilo que temos de pior. É onde a cidade despeja seu lixo, e não por coincidência o lugar em que aquelas duas pessoas resolveram se atirar. É refúgio do desespero. Caminho que corta a cidade. Paciente, nos observa, nos suporta. Melhor se fizesse outro caminho, e não se impregnasse de nossa sujeira.
Isso aconteceu no Rio Pinheiros. Mas acho oportuno citar uma estrofe das meditações de Mário de Andrade sobre o Tietê:

“A trágica sina do rolo das águas se dirige
O leito impassível da injustiça e da impiedade.
Ondas, a multidão, o rebanho, o rio, meu rio, um rio.
Que sobe! Fervilha e sobe! E se adentra fatalizado, e em vez
De ir se alastrar arejado nas liberdades oceânicas,
Em vez se adentra pela terra escura e ávida dos homens”.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Ela

Enquanto ela descia, eu subia a Av. Angélica. Ambos andávamos rápido, mas pude observá-la mesmo assim: uma moça bem bonita. Pena que nos encontramos ao acaso, no meio da rua, não em ocasião mais favorável. Fico pensando na quantidade de moças bonitas iguais àquela que cruzam diariamente o meu caminho. E acho isso um desperdício. Mas também ninguém é louco de sair atrás das pessoas que passam na rua, ainda que seja somente das moças mais bonitas... Foi o que fiz: dei a volta, contrariando minha autocensura, e comecei a descer a Av. Angélica, sentido centro.
Apressei-me para vê-la de perto: usava calça jeans apertada, que lhe marcava as coxas, cós baixo, as nádegas grudadas no tecido, o jeans descia apertado até o tornozelo, e sandálias de salto lhe conferiam altivez. Para frente e para trás, seus braços não fugiam muito do corpo. Caminhava com segurança, o tronco retinho, mas a cintura rebolando demais. Fiquei imaginando o ritmo dos seus seios naquela blusinha vermelha de alça... Talvez estivesse indo fazer compras. Ou procurando uma clínica médica para passar por consulta, já que existem várias nessa região. Só trazia consigo uma bolsinha preta, onde cabem dinheiro, documento e batom.
Ela atravessou a rua, entrando na Sergipe. Seria estudante do cursinho? Quem sabe uma menina de fora, do interior, de Santa Catarina, do Rio, preparando-se para o vestibular. Mas não demonstrava nenhuma incerteza, não parecia perdida, não parecia de fora. Determinada, passou pelas sombras antigas das árvores, ignorou a fachada do cursinho e parou na beirada da Consolação esperando o sinal. Pela primeira vez, ficamos lado a lado. Quase toquei seus dedos. Senti seu perfume. Uma menina de ombros durinhos, certinhos. Mas o farol não demorou para abrir, atravessamos. Descemos juntos a Consolação, ela sempre na frente.
O que estava fazendo ali? Tinha que tomar um ônibus lá em cima, na Dr. Arnaldo; em vez disso, descia, insistia no caminho inverso... Até onde teimaria com aquela loucura? Até onde ela me levaria? Quem sabe ao seu apartamento. Talvez planejasse passar a tarde em casa, descansando, para sair à noite com uma amiga para bater-papo. Mas e se fosse casada, namorada?... As chances eram grandes; afinal, uma moça bonita igual àquela não é de ficar sozinha. Por um instante, considerei-me ridículo, e a minha perseguição, inútil. Mas viramos lá embaixo, na Dona Antônia de Queiroz.
Foi quando, enfim, ela me percebeu. Pelo menos olhou para trás umas três vezes antes de entrar na padaria. Nesse momento, quase desisti, larguei tudo, de tanta vergonha, mas aquela história merecia um desfecho mais interessante. Entrei também na padaria, sentamo-nos juntos ao balcão, eu de expresso, ela de café com leite. Agora nossa relação havia se tornado escancarada. Não havia mais o que esconder. Ela sabia que eu a estava seguindo; eu sabia que ela tinha percebido tudo. Primeiro, olhou-me com curiosidade no meio de um gole quente. Depois, achando graça, deu um sorriso, mexeu os cabelos para trás, tudo de propósito. Nosso contato era inevitável. Mas antes de qualquer iniciativa, ela se levantou, pagou com moedas e voltou para a calçada.
Incrível como não precisamos de muito esforço para encontrar o extraordinário no nosso cotidiano. Tinha me desviado do caminho de casa há uns 25 minutos. Agora o que seria da minha tarde, do meu dia, da minha vida? Esperava a melhor recompensa por esse meu ímpeto de rebeldia. Sentia-me dono do meu próprio destino, ao mesmo tempo em que caminhava na direção de um lugar indefinido. Viramos na Rua Augusta. Atravessamos na faixa. Paramos na frente de um sobrado antigo, onde reluziu um molho de chaves. Ela me olhou e disse, com ternura, que tinha gostado de mim. “Um gatinho”, ela falou, aproximando-se, quase beijando...; mas só iria comigo, se quisesse, dali meia hora, porque tinha que tomar banho e se aprontar. Que eu esperasse, era bem rapidinho. Sessenta reais. Logo viria me buscar. Mas não esperei que ela voltasse; afinal, estava longe de casa e não tinha sessenta reais.


Carlos Conte
São Paulo, 26 de maio de 2009.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Pinga

Brincavam com meu finado avô que o único médico de que ele gostava, e nunca reclamava, era o oftalmologista, porque em vez de exames penosos e privações a que geralmente os pacientes são obrigados a se submeter, as recomendações do oftalmologista são simples e prazerosas: pinga 4 vezes pela manhã, pinga 6 vezes à tarde, pinga antes de dormir... Mas meu avô não gostava nada dessa piada, dizendo que nunca foi de pinga, só vinho após o jantar e uísque nas comemorações.
Há 15 dias passei por consulta no oftalmologista da família, o mesmo que operou meu avô da catarata. Apesar de nunca ter tido problema nas vistas, ultimamente venho sentindo um pouco de dor de cabeça durante minhas leituras. Fui saudado, logo que entrei na sala, pelo Dr. Puleghini, emocionado em saber que o neto leva o mesmo nome do avô, e fez questão de evocar as qualidades do Carlos falecido – “Homem de caráter!” –, já que não se fala mal de quem morreu. Em seguida, examinou-me na cadeira; encostou a máquina na minha testa, mandou-me ler alguns números projetados na parede branca e, após analisar meus olhos de perto, encaminhou-me à secretária, que, sem ao menos se apresentar, tomou meu rosto com suas mãozinhas e mandou ver colírio. De modo que, em dois minutos, não era possível nem enxergar a capa da revista Caras na sala de recepção.
– É que tem que dilatar as pupilas – ela disse. – Depois de 3 horas o efeito passa.
Alguns minutos mais tarde, como se não bastasse o estrago da primeira dose, a secretária bonitinha, agora uma figura abstrata sem contornos nítidos, veio com mais uma sessão de pinga-pinga ni mim, inundando meus olhos e molhando meu rosto. Agora estava embaçado! Voltei meio bêbado à sala do Dr. Puleghini, onde a sequência de exames se repetiu. Resultado: não existe grau em nenhuma das minhas vistas, e talvez o motivo das dores de cabeça seja excesso de leitura. Saudosista, o doutor me abraçou apertado – “Trabalhador que nem o avô!” – e me conduziu à recepção, onde a secretária bonitinha me disse “tchau”, antes que eu saísse pela porta da frente.
Lá fora, meio-dia, o sol assassinava. A tarde mais clara do ano, certamente, só porque eu estava sozinho na rua com as pupilas dilatadas. Agora a piada da pinga tinha sentido completo, pois os efeitos daquele colírio na minha cabeça podiam ser comparados a cinco doses bem servidas de 51. Só era possível olhar para o chão embaixo dos meus pés, nada mais; assim fui caminhando pela sombra das marquises das lojas sem poder fixar o caminho a minha frente. Encostei-me num poste. Não conseguia abrir os olhos.
– Será que alguém pode me ajudar? – perguntei para a calçada lotada do centro comercial da Lapa.
Repeti a súplica, mas não obtive resposta. Talvez precisasse falar mais alto. Lembrei-me do telefone celular que tinha deixado carregando no meu quarto. Pensei em retornar ao consultório para telefonar para alguém, mas cego do jeito que estava me senti inseguro para dar meia volta e refazer o caminho. Nem sabia direito onde estava. Resolvi seguir por conta própria; mas como faria para atravessar a rua? Que vida difícil deve ser a dos ceguinhos; não menos dramático, envelhecer numa metrópole como esta. Uma tarefa tão simples, tão complicada: precisava transpor a via pública. Fui tropeçando nas pessoas que aguardavam o farol fechar, um bolinho de gente desconhecida, gente sem corpo ou fisionomia. Até que alguém comentou lá do meio:
– Olha esse aí, ta bêbado ou ta drogado.
Como eu queria poder enxergar a cara de quem disse isso.
– Escuta aqui, não bebi nada não!
Mandei o fulano cuidar de sua vida. Veja se tem cabimento ficar falando dos problemas dos outros! Ajudar ninguém ajuda.
– São os meus olhos... Não to enxergando nada. Foi o médico. Ou melhor: foi o colírio que o médico mandou pingar nos meus olhos e não to vendo um palmo na minha frente... Bêbado nada! Bêbado é o seu pai, a sua mãe... A sua mulher! Vai te catar! Ta ouvindo?
Mas ninguém estava ouvindo. Enquanto falava, a galera já tinha se mandado para o lado de lá da rua, e eu fui atrás, sempre olhando pro chão, até que encontrei uma sombra para aliviar minhas vistas. Poderia ir atrás de um orelhão, tentar pedir ajuda novamente, ou até mesmo esperar o efeito passar. Da sombra, era possível enxergar melhor os arredores. Permaneci quieto, ouvindo o rumor da multidão consumidora. A solução estava próxima, tinha certeza, já que ninguém conhece aquele pedaço tão bem quanto eu. Havia uma loja de 1,99 ali pertinho. E, corajoso, caminhei na direção que julgava ser a certa, vendo através da claridade ardida uma sequência de nomes, anúncios, propagandas: estava desbravando. Até que consegui adentrar a loja e me dirigi ao vulto que julguei ser o da atendente.
– Óculos escuros, por favor!
4,99?! Faz tempo que essas lojas de 1,99 não são mais lojas de 1,99. Mas naquele momento desesperado daria meu reino por aqueles óculos, que nem a famosa exclamação de Paulo Mendes Campos sobre os pentes. Paguei, feliz, pelos meus óculos de plástico, e ganhei a calçada novamente, onde tudo parecia novo e fácil. Cheguei a pensar em retornar à clínica para reclamar do absurdo de se permitir que um paciente sem nenhum acompanhante saia na rua nessas condições. Mas quer saber?... Preguiça de brigar. Deixa pra lá. Tomei meu ônibus.
Diferentemente do meu avô que, segundo dizem, ao menos gostava de oftalmologista, afirmo que a partir de agora não gosto de nenhum tipo de médico, muito menos desses que cuidam dos olhos. Prefiro a pinga de verdade, que dá no alambique, e é fornecida aos bares da cidade, porque os efeitos do pinga-pinga do colírio podem ser muito mais perversos.

Carlos Conte
São Paulo, 27 de fevereiro de 2007 (reescrita em 03-03-09).

terça-feira, 14 de abril de 2009

Aula de Biologia

Finalmente larguei o lápis sobre a carteira, depois de responder às questões de biologia que o professor tinha passado. A sala estava cheia, e a maioria ainda se encontrava curvada sobre seus cadernos tentando terminar os exercícios. Sem nada para fazer, fechei o caderno e fiquei olhando para os colegas ao meu lado, reparando nos detalhes daquela cena matinal tão conhecida. Até que meus olhos pararam nela. A menina nova. Tinha mudado para aquela escola há uma semana apenas, vinda de intercâmbio na Europa. Na sala, silêncio. Ela ainda estava entretida na resolução dos exercícios, movendo seu braço direito, fino e delicado, em cuja extremidade havia dedinhos elegantes segurando um lápis cor-de-rosa. Ai, suas pernas, suas pernocas, ora cruzadas, ora juntinhas, de tão expostas que estavam pela saia curta, de tecido leve, arrepiaram-me os pelinhos da nuca. E o que dizer de seus pezinhos? Calçavam uma sandália atraente, de couro, que pouco cobria aqueles dedinhos brancos e roliços. Já tinham me falado dela – afinal, a molecada não perdoa carne nova –, mas só naquele instante me dava conta de sua beleza. Não dava para vê-la de frente, pois ela estava na fileira ao lado, algumas carteiras adiante, mas fiquei imaginando como seria acariciar seu umbigo, lambê-lo a meu modo, bem devagar. Aí ela tremeria de paixão, certamente, e cheia de instinto gingaria sua cintura magra, pedindo-me desesperadamente que aumentasse a intensidade de meus atos. Depois, suas costas. Seus cabelos. Estes dava pra ver. Moveria aqueles fiozinhos escuros com as mãos, ainda que insistissem em cair sobre seu rosto, e a beijaria violentamente. Seus lábios cansados, seu calor passando para meu corpo... Na minha imaginação, estávamos despidos; na cama; não, na cozinha; não, ali na sala de aula mesmo, eu segurando firmemente sua coxa, enquanto ela, ainda ofegante, ainda gemidos, descansava ao meu lado. No fundo, uma voz. Uma voz cortou todo aquele sonho colegial. Rouco, insistente, repetia a mesma palavra. Não, queria voltar àquela orgia!
– Você! Ei, você!
Despertei, a contragosto.
– Qual é o seu nome mesmo?
A voz vinha da frente, era real, e todos na sala olhavam para mim, inclusive a moreninha gostosa.
– Acorda, rapaz! Qual é o seu nome mesmo?
– Eu?!
– Não, eu! – respondeu o professor com ironia, despertando rizinhos na turma.
– É Carlos.
– Você respondeu às questões, Carlos?
– Respondi sim.
– Muito bem. Então venha aqui pra frente e leia suas respostas pra sala.
Acontece que aquela indecência tinha me deixado com problemas. Estava com “a barraca armada”, como se diz, depois de toda a perversão que tinha detalhadamente imaginado durante os últimos minutos. Em uma situação normal, nada disso seria problema. Mas aquela não era uma situação normal. Pelo contrário: era desastrosa! Estava sem cueca e de calça de moletom, meu Deus, se me levantasse agora todos veriam em que condição ridícula eu me encontrava. Insistente, o professor me chamou.
– Carlos, venha cá, estou te chamando!
– É que... É que, professor, eu ainda não terminei, melhor chamar outro...
– Bom... algo você deve ter feito. Venha cá e leia o que fez, não faz mal.
Estava suando. E nada do tarugo se acalmar. Ele, erguido, impávido, como uma bandeira hasteada lá no alto; eu, encolhido, medroso, pequenininho. Tinha de pensar em alguma saída rapidamente. Tínhamos que entrar num acordo, meu pinto e eu. O suor escorreu-me pela testa, alojou-se, gota a gota, na ponta do queixo, e inesperadamente caiu como bomba, uma baita de uma gota, bem no meio do caderno fechado. Na frente, o professor. Percebeu meu embaraço.
– Carlos, não tenha vergonha. Tudo bem se tiver respondido errado. Vocês estão na escola justamente para isso. Errar é aprender! Ou melhor, é errando que se aprende! Faz parte do processo de aprendizagem socializar as descobertas com os colegas. Vamos, Carlos! Venha cá, não tenha medo. Aqui todo mundo está aprendendo...
Enquanto isso, meu documento esmagava-se impiedosamente contra a calça de moletom. Aquilo era humilhante!
– Professor, não vou.
A classe, perplexa, me olhava. Foi quando fechei os olhos, firmei o pensamento...; se a causa de tudo estava na cabeça, então era da cabeça que viria a solução. Consegui, por alguns segundos, abstrair a realidade a minha volta, e concentrei-me o máximo que pude. Pensei na minha avó. Ela, gorda, acabando de acordar, de camisola, sua pinta cabeluda no braço, sua voz estridente me chamando. Mas meu pinto continuava o mesmo: ereto e indiferente. Depois pensei no cachorro que outro dia mandaram em casa para cruzar com a minha cadela. Que cena feia os dois copulando, de bocas abertas, ele por trás, castigando a pobre coitada, sem fôlego; credo! Só que isso também não serviu para espantar o meu tesão.
– Carlos, venha já! – gritou o professor, achando, provavelmente, que eu estava desafiando sua autoridade.
Gritou mais algumas coisas, nem conseguia enxergar ao redor, fui me levantando, com o caderno nas mãos, a sala em silêncio, revelando aos poucos o meu segredo, um bico sobressalente forçando o moletom. À medida que caminhava, caras, bocas, rostos, ficavam todos para trás, até que parei em frente ao professor, que me olhava calado. Uns riam, cutucavam outro colega, que ainda não havia percebido, de modo que o constrangimento gradativamente tornou-se geral. Mas ninguém me disse nada. Subi no tablado, virei de frente para a classe e me posicionei ao lado do professor. Pela primeira vez, olhei a turma toda. Os que estavam rindo uma hora ficaram sérios, talvez constrangidos em minha consideração, ao passo que eu estranhamente me tranquilizei. Abri o caderno, olhei novamente para a sala, senti-me forte, seguro, um homem! E antes de iniciar a leitura, pude ver, no meio da sala, a tal da moreninha, a provocadora de toda a cena. Olhava para meu rosto, para meu pinto; para meu pinto, para meu rosto, deixando aos poucos surgir um lindo sorriso, sem mostrar os dentes; um sorriso sensual.


São Paulo, 14 de fevereiro de 2003 (reescrita em 10-03-09).

Carlos Conte

terça-feira, 7 de abril de 2009

O mesmo

– Nossa, tenho medo do mesmo.
– Medo do mesmo?! – perguntei, intrigado.
– É... do mesmo... Pra você não dá medo também?
Já ia me preparando para uma resposta filosófica sobre o “mesmo”, o oposto do “diferente”, ou sei lá o que, ainda que não tivesse ideia do que dizer a respeito dessa afirmação maluca que a minha amiga tinha feito, quando ela, debochando, resolveu me explicar tudo:
– O mesmo... Esse aí que está escrito na plaquinha do elevador.
Ah, então era isso!... Bem mais simples do que havia imaginado. Questão de linguagem, não de filosofia. Minha amiga estava tirando uma onda com o aviso presente em todas as portas de elevador, em todos os pavimentos, dos edifícios da cidade de São Paulo: “Antes de entrar no elevador verifique se o mesmo encontra-se parado neste andar”. Duvido que alguém nunca tenha visto essa frase. Talvez seja uma das mais lidas pelo paulistano – e só pelo paulistano, uma vez ser essa advertência resultante da lei municipal nº 8596, de 11 de março de 1997. Não moro em prédio (continuo resistindo bravamente), mas sei desses detalhes porque, ao entrar no Google, e digitar só metade do período (“Antes de entrar no elevador...”), descobri, com surpresa, que há milhares de textos, entre crônicas, diários publicados em blogs, artigos, textos de revistas sobre gramática, cartas forenses, que tratam dessa frase curta, besta, feia, mal redigida, mas famosa, porque estampada nos elevadores de toda a cidade. Para ser mais preciso, o Google encontrou mais de 54.200 resultados para a minha pesquisa.
Claro que não li todos. Minha ideia, na verdade, nem era fazer pesquisa sobre o assunto. Só consultei o Google porque estou criando o hábito de fazer isso; qualquer coisa, desde letra de música até presente de amigo secreto, dou uma espiada lá no Google pra ver o que acontece. E, para o aviso do elevador, ele me deu de resposta essas dezenas de milhares de referências, que, em vez de facilitar, acabam até dificultando, pelo simples fato de que muita informação às vezes atrapalha.
Bom, mas não é do Google que pretendo falar. Mais especificamente, de um texto que encontrei nessa rápida, mas complexa, pesquisa. É de Josué Machado, jornalista autor de alguns livros, que escreveu um artigo para a “Aprendiz”, uma revista de educação. Lá ele analisa a famigerada frase do elevador do ponto de vista da linguagem, e faz considerações interessantes. Para que falar “Antes de entrar no elevador” se o aviso está colocado justo na porta do elevador? Bastaria dizer “Antes de entrar” que o leitor, morador ou visitante, entenderia. Segundo o jornalista, não é de se imaginar que alguém vá pregar uma plaquinha na porta do elevador alertando para alguma coisa que pode acontecer na garagem do prédio, por exemplo; “Antes de entrar na garagem...”. Isso nunca. Se o aviso está grudado ali, é óbvio que a porta de que trata é a do elevador, redundância que poderia ser evitada omitindo-se o lugar. Onde mais se entraria por aquela porta?
Outra coisa é a ausência da vírgula após uma “espaçosa oração inicial”, segundo Josué Machado. Ali, o certo seria pôr vírgula, mas o redator da frase ou se esqueceu ou não sabia que tinha que fazer isso. São tantos problemas de linguagem num texto tão curto que o jornalista se pergunta: “Terá muita gente trabalhado para alinhar as palavras do aviso (...)? Será que esses vereadores sábios não têm um redator levemente alfabetizado entre seus auxiliares?”.
Mas o problema maior é o indefinido “mesmo”. Esse ganha de todos! No Aurélio, diz que seu uso, como pronome, “parece inconveniente”, embora possa ser encontrado com facilidade na literatura, inclusive em autores consagrados. Penso que deveria ser proibido. Sim. Aproveitar que vão fazer o novo acordo ortográfico (em grande parte desnecessário, no meu modo de ver) e incluir o “mesmo” na lista; ou melhor, excluí-lo de uma vez por todas. “O homem de terno azul entrou lentamente pela porta. O mesmo levantou-se e ligou a televisão”. Por que não substituir pelo pronome “ele”? Não é mais simples? O escritor é pedante, quer falar difícil, e acaba cometendo a maior bobagem. Não soa legal. É de mau-gosto. É tão feio quanto votar nesses vereadores picaretas, que fizeram a lei que obriga a fixação do aviso na porta de todos os elevadores do município.
No final do artigo, depois de várias críticas, Josué Machado aponta algumas alternativas para a frase: “Antes de entrar, veja se o elevador está no lugar”. Mas assim não fica bom, porque rima – e o objetivo de um aviso, até onde eu sei, é avisar, não rimar. Talvez um jeito melhor de alertar os usuários dos elevadores seja dizer: “Não entre sem ver se o elevador está no lugar”; ou: “Só entre se o elevador estiver no lugar”; ou: “Antes de abrir, verifique se o elevador está no lugar”; ou ainda: “O elevador está no lugar? Então pode abrir”... Sei lá. Deve ser possível transmitir essa informação de muitas maneiras diferentes, sem cair em redundância, sem falhas de pontuação e sem ter de recorrer ao odioso “mesmo” como pronome.
Ora, mas eu mesmo não disse que há inúmeros textos que tratam desse assunto? Não falei há pouco que o Google fez uma pesquisa e me bombardeou com mais de 54.200 resultados? Por que escrever então sobre um tema tão batido? Para revelar que tenho motivos especiais, bastante pessoais, para não reclamar do “mesmo”. Apesar de concordar com todas as críticas feitas pelo jornalista, contraditoriamente afirmo que gosto do “mesmo”. Isso mesmo. Não precisa mudar nada. Sou a favor de sua permanência, por tempo indeterminado.
Minha amiga e eu entramos no elevador. E ela continuou seu raciocínio:
– Não parece que esse “mesmo” é uma pessoa?...
– Parece... – respondi dando risada.
Ela me disse que outro dia ficou viajando que o mesmo era um ser sobrenatural, um monstro, um espírito... "O mesmo". Será que ele está neste andar?... Olhei sorrindo para a minha amiga e elogiei sua imaginação. Verdade. O que deveria ser "O mesmo" na cabeça de uma criança de 7 anos? Certamente, muitas coisas horripilantes...
Chegando ao andar do seu apartamento, resolvi arriscar, e perguntei para ela: se não gosta do mesmo, por que não optar pelo diferente?... Olhamo-nos bem fundo; foi mesmo. Ela entendeu o que eu estava dizendo. É que essa amiga namora há 3 anos com o mesmo, o mesmo namorado. Chega do mesmo! Não é mesmo?
Abriu a porta do apartamento, sem dizer nada, jogamos nossos materiais de estudo no chão (materiais que usaríamos para o trabalho de dupla da faculdade), e decidimos que naquela tarde não estudaríamos, mas ousaríamos sair do mesmo: curtir o diferente.

domingo, 29 de março de 2009

As seis mulheres e a bibliotecária

Quando estou com dificuldade para escrever minhas crônicas, recorro à biblioteca que tem perto de casa, a Biblioteca Municipal Cecília Meireles, que considero meu refúgio. Não porque lá encontre referências do gênero, nem teorias literárias sobre a estrutura ou a história da crônica brasileira; trata-se de biblioteca infanto-juvenil, onde posso achar “O Santinho”, do Luis Fernando Veríssimo, ou “O Sorvete e outras histórias”, do Drummond. Se vou até lá, portanto, não é para procurar inspiração nos livros, mas porque o próprio espaço – sempre tranquilo, amplo, arejado, silencioso, mesas grandes, corredores aconchegantes – oferece-me o que há de melhor para a atividade de redigir. Nunca vejo crianças, embora o lugar tenha sido feito para elas.
Certa vez, quando me faltou inspiração e pedi socorro à tranquilidade da biblioteca, seis mulheres se instalaram indiscretamente na mesa ao lado da minha.
– Nunca mais vou ao dentista em véspera de feriado!... – falou indignada a que estava de costas para mim.
Nesse momento, olhei para a folha em branco, para a ponta do lápis ainda intacta; busquei concentração nas árvores do jardim, que via através da porta de vidro, querendo que minha crônica surgisse de algum lugar.
– ... O dente do canal infeccionou e me doeu o feriado inteiro! Nem deu pra aproveitar...
As seis mulheres, todas com mais de 50 anos, simplesmente papeavam. Podiam estar num supermercado. Ou na manicure. Ou no cabeleireiro. Ou até mesmo na feira. Com certeza há muitos lugares em que aquelas seis mulheres seriam apenas seis mulheres, seis donas-de-casa, seis esposas, seis mães de dois ou três filhos, seis moradoras da Vila Romana, ou Vila Ipojuca, ou Bairro Siciliano, em cujas residências há carne seca esperando de molho, e o jantar todo por fazer. Da Cerro Corá ao Mercado da Lapa, poderiam estar em qualquer canto, tudo permitido, e seriam somente mulheres comuns. Mas naquela biblioteca transformavam-se em pessoas malvistas, indesejadas.
Além de nós, não havia mais nenhum frequentador àquela hora. Senão esperaria (como sempre faço) que outro incomodado se levantasse, caminhasse até o grupo e pedisse pelo fim do falatório. Acontece que o único aborrecido naquela sala era eu! E, confesso, faltou-me coragem para tomar uma atitude... Bateu-me a timidez, não sei como explicar... Era como se não tivesse direitos (embora estivesse com a razão); senti-me “menor”, com a auto-estima lá embaixo, diante de seis mulheres mais velhas e amedrontadoras. Que as duas funcionárias tomassem uma atitude. Ora, é o mínimo que se pede a um funcionário de biblioteca, que saiba ao menos a localização dos clássicos e que zele sempre pelo silêncio do ambiente de estudo. Só que em vez de exigir silêncio, a bibliotecária que datilografava (detalhe: lá ainda se usa máquina de escrever!), como se não bastasse o tormento das marteladas de sua datilografia, decidiu levantar-se, puxar uma sétima cadeira e sentar-se com as seis, somando-se à bagunça. Agora eram seis mulheres e uma bibliotecária.
– Vocês lembram da Sônia?... – começou a falar a nova integrante do bando. – Pois é, coitadinha... Teve hidronefrose, segundo me disseram, líquido nos rins!
Uma porção de caretas. Ó, que horror deve ser isso! Como é o nome mesmo?... “Hidro...”. Pelamordedeus. Minha Nossa Senhora! Quanto mais difícil o nome, pior a doença. E curou? Ah, curou, graças a Deus. Mas sofreu? Tadinha...
– Menina! – emendou uma outra. – Pedra nos rins foi o que teve o meu cunhado, o Vanderlei, dono da drogaria do Lgo. Tito. Coitado do homem! Dava dó quando ele ia no banheiro... Chegava a rasgar o canal do rim, e saía sangue! Depois os médicos foram descobrir que tinha pedra do tamanho de uma azeitona, imagina?
– Nossa! Do tamanho de uma azeitona, Nena!
Nena respondeu afirmativamente. É daquelas mulheres trágicas, que gostam de impressionar. Enquanto falava da desgraça alheia, as outras permaneciam absorvidas pelas imagens terríveis que seus dentes escurecidos forjavam em contato com a língua. Daí eram caras, mãos tapando bocas, olhos esbugalhados...
– ... Meu pai... – continuou – ... meu pai tem três rins, vocês sabiam?
Nesse momento, até eu me esqueci da folha em branco e me virei para olhar na cara da mulher: três rins?!
– Três!
E não tira por quê? Afinal, tem tanta gente que precisa... na fila de doação de órgãos há meses, há anos... Que falta lhe faria esse rim a mais, poxa vida? Se eu tivesse três rins, ou três pulmões, ou até três pernas, quem sabe, com certeza mandaria arrancar o excedente e levaria como doação ao Hospital das Clínicas. Quase me levantei e disse isso àquela mulher.
– Ué, e vocês acham que o meu pai nunca quis tirar? Quis sim, quem não concordou foi o médico. Disse que era perigoso demais operar, que não valia a pena... Na minha opinião, se tem a mais, é porque é vontade de Deus. É ou não é?
É! Lógico que é! Claro que é! Fez o coro geral.
– Então, né, gente, que mal tem?... Meu pai tem três rins, tem gente que tem seis dedos, e ninguém ganha nada com isso. Só a turma que se assusta um pouco quando a gente conta, mas não tem por que se assustar.
Terminado o relato chocante, outra senhora comentou:
– Para pedra nos rins, Coca-Cola com suco de abacaxi.
Eu que sempre achei que Coca-Cola fizesse mal... Anotei no caderninho.
– Tomate. Água com gás.
– Ah, isso é que é bom: água com gás!... – exclamou a que estava mais afastada da mesa, de pernas esticadas, quase deitada na cadeira, como se estivesse numa sala-de-visitas.
– É verdade. Água com gás dizem que é bom mesmo.
E quando pensei que não houvesse mais nada para se discutir em matéria de rins, uma disse:
– Já o meu médico não deu receita nenhuma!
– Está brincando! Que médico é o seu?
– O Dr. Nelson, do lado de cá da Pio XI...
E a conversa se seguiu por mais alguns minutos. Tentei recolher o que havia restado da minha concentração espedaçada, mas redigir naquela tarde havia se tornado impossível.
– Que preguiça, hein? – bocejou uma.
– Tenho que pegar meu neto na escola.
– Vou perder a novelinha.
– O mercadinho ainda está aberto?
– Um beijo, bom descanso!
– Um beijo pra todas, até!
Saíram. O silêncio voltou à biblioteca. A bibliotecária retomou suas atividades em frente à máquina, e olhou para o relógio, esperando pelo fim do expediente. Tem vezes em que a crônica não está onde se procura; mas, ao contrário, é ela quem persegue e toma o cronista à força. Eram aquelas mulheres, com quem na verdade sempre convivi, as donas-de-casa aqui do bairro da Lapa.

São Paulo, 16 de fevereiro de 2009.
Carlos Conte