terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

É proibido fumar

Estão tentando, de todas as maneiras, acabar com a boemia. Refiro-me à boemia de verdade, às viagens noturnas de bar em bar, em Pinheiros e cercanias, no centro, na Barra Funda, na Lapa, Bela Vista, seja lá onde tiver um boteco; refiro-me ao compromisso de estar acompanhado dos amigos, sem ter nenhuma conversa em especial para rolar, nenhum assunto importante a ser tratado, um encontro despreocupado, que às vezes acontece sem querer, a uma mesa de bar, ou em pé, ao balcão; refiro-me à boemia que não respeita os bons-costumes, que fala palavrão, a boemia que não conta piada de salão: “cerveja na mão, pau no cu do meu patrão”; à boemia cara-de-pau, mentirosa, verdadeira, que ocorre nas esquinas da cidade, pelas calçadas, fechando estabelecimentos uns atrás dos outros, até cair em algum pedaço maldito, às oito da manhã, hora de voltar pra casa; refiro-me, vocês sabem, ao hábito de sair para beber, encontrar camaradas, mulheres, mas também ao hábito das mulheres encontrarem suas amigas, e paquerarem os rapazes, ou paquerarem as próprias amigas e os rapazes almejarem os amigos, tudo pode, afinal não me refiro à boemia machista de tempos atrás, mas a sua versão atual, mais democrática; de qualquer maneira, sendo do sexo masculino ou feminino o andarilho etílico da madrugada, a boemia a que me refiro, quando é verdadeira, verdadeira mesmo, é extraconjugal, avessa a preconceitos mofados, não gosta de compromisso, não é careta, é adúltera, é chegada a uma pulada de cerca; falo da boemia pobre, rica, mas que, pelos milagres da noite, acaba confundindo tudo isso, e rico bebe 51, e pobre, de vez em quando, beberica um uísque. Bom, vocês sabem do que eu estou falando, nada desse lance quadrado, puritano, que vem ocorrendo no estado de São Paulo e principalmente na capital.
Outro dia fui com um amigo comprar ingredientes para um almoço no Mercadão. Além da decepção de não encontrar verduras e legumes em barraca alguma (já que o turismo está transformando o lugar em ponto quase exclusivo de venda de sanduíche de mortadela e bolinho de bacalhau, cada dia mais caro), espantei-me com um fato extraordinário. Já estávamos saindo, resignados, quando resolvi perguntar ao dono de uma banca de frutas (cerejas e morangos para inglês ver) se ele sabia de alguém que por acaso vendesse cogumelos frescos.
– Não, rapazinho, não pode mais. Colocaram até placa avisando.
– O que, não pode mais vender champinhom?!
– Não, não foi isso que eu falei.
– Também não foi isso que eu perguntei!
Era o início do que se chama por aí de conversa de louco, porque ninguém se entende, cada um achando que o assunto é um, e não outro. Tudo muito louco.
– Senhor, eu estou perguntando se o senhor sabe de alguém que vende champinhom fresco aqui no mercado; o senhor sabe ou proibiram mesmo?
Cheguei a pensar, por alguns segundos, nesta possibilidade: devido a alguns casos sérios de intoxicação, a secretaria da saúde proibiu a venda de champinhons frescos, e espalhou cartazes pelos supermercados, mercadinhos e feiras, a fim de proteger a população e evitar um problema maior de saúde pública. Mas como isso parecia improvável, deixei essa ideia de lado e repeti ao vendedor minha pergunta do champinhom.
– Ah, você quer saber do champinhom! – ele disse, levando as duas mãos ao rosto de tão encabulado. – Champinhom tem sim, claro que tem... Eu tinha entendido outra coisa. Achei que você tava perguntando se podia fumar aqui dentro, porque fumar não pode – e, dando risada, me explicou onde é que ficava a barraca onde se vendiam os cogumelos frescos.
Saímos de lá, meu amigo e eu, pensativos, carregando numa sacola um quilo de champinhons. Que papo estranho! Como se pode confundir cigarro com champinhom, como isso é possível? Problema sério de audição, certamente, para cometer um equívoco tão grave. Trata-se de uma pessoa idosa que ouve muito mal. Mas meu amigo, metido a sociólogo, veio com uma explicação bastante convincente, que se soma, com certeza, ao problema de audição: estão metendo na cabeça das pessoas que não pode fumar, não pode fumar, em propagandas, com o Dráuzio Varella, em programas de rádio e televisão, em jornais impressos, por meio de grupos itinerantes de orientadores que percorrem estabelecimentos, estão conscientizando com tanta eficácia que, além de muito bem conscientizadas, as pessoas estão virando polícia, delatando, censurando, reprimindo. Inculcaram tão bem na mente daquele feirante que é proibido fumar, que a primeira coisa que lhe ocorreu quando ele não ouviu direito o que eu lhe perguntei foi a proibição. É proibido fumar, diz o aviso que li em bares, restaurantes, padarias, pastelarias, açougues, supermercados... Trata-se de um cartaz uniformizado, cujo desenho está disponível para impressão no site do governo, em que, no centro do mapa estilizado do estado de São Paulo, um cigarro é cortado ao meio por uma tarja vermelha. Cheguei a encontrar esse aviso na entrada do estacionamento do Pão de Açúcar; detalhe: o estacionamento é descoberto! O medo da multa é tão grande que qualquer cuidado é pouco. Tem que fazer valer a lei.
Além da proibição do cigarro, não se pode mais tomar cerveja longe de casa, a não ser que se tenha motorista particular, ou 30 reais reservados para o táxi, ou ainda um amigo careta que bebe leite. Caso contrário, uma das poucas opções é o bar da esquina, a poucos metros de casa, de onde se pode voltar a pé. Ônibus de madrugada a gente sabe que não tem; estação de metrô só abre cedinho. O jeito, portanto, é beber a noite inteira até o dia clarear, quando o transporte público retorna às atividades. Mas ultimamente ando infringindo as regras, e saindo de carro. Para burlar a blitz, desenvolvemos, meus amigos e eu, o costume de enviar mensagens de celular para a galera caso haja blitz à vista: “Evitar Dr. Arnaldo com Cardeal”, ou “Não passar pela Consolação”, ou ainda “Blitz na Henrique Schaumann, cuidado!”, e por aí vai, o torpedo sendo repassado diversas vezes, de modo que na maioria dos casos não se sabe quem foi o primeiro a dar o aviso. É, a gente se vira como pode...
E assim a boemia vai dando lugar à caretice geral. Pessoas denunciando outras, fiscalizando, supervisionando. Viaturas de tocaia para multar algum trouxa desavisado. E àqueles que pensam que dá para fumar na rua, cuidado, porque tem a Lei do Psiu, que é para garantir a tranquilidade merecida de quem trabalha o dia inteiro. Outra alternativa para quem ainda não desistiu da noite é chamar a turma para beber em casa, comprar gelo, uma garrafa de Cavalo Branco, convidar as menininhas, pôr uma música no rádio, e coisa e tal, evitando todo tipo de importunação. Mas o que fazer com o vizinho, que sempre reclama quando a gente resolve armar uma festinha? Talvez o problema sejam os outros; e eu, problema para os outros. É o desafio de se viver em sociedade. E para não acharem que só desço a lenha e sou radical, apresento soluções plausíveis: que se aumente o nível alcoólico permitido para quem está ao volante (já que ninguém fica bêbado com um só copo de cerveja) e que se reinstituam as alas para fumantes nos restaurantes da cidade. Nos lugares fechados, tipo discotecas e boates, que o dono da casa se vire para reservar aos fumantes um canto, ou um salão, ou uma varanda, e está tudo certo; terminado o cigarro, ele volta pra pista comum.
Só não podem fazer o que estão fazendo. Proibindo demais. Daqui a pouco não vai mais poder beijar na boca, já pensou? Aí o jeito é largar de vez todos os vícios, abdicar das noitadas e dos divertimentos da carne, e as meninas irem ao convento, e os rapazes à vida do celibato.

Carlos Conte Neto
São Paulo, 25 de agosto de 2009.

4 comentários:

  1. Ah, Carlos! Que bom te ler de novo. Concordo e concordo, está difícil, mui difícil. Assim: estava sentada na calçada, num bar, na ALA DE FUMANTES - ali era permitido. Quando um tiozinho não-fumante deveras simpático me lança: 'Olha, você não me leve a mal, mas, por gentileza, pode prestar atenção onde está indo sua fumaça, porque nós vamos comer?'. Aí eu... fiquei puta e virei o cigarro pro lado.

    Ah, isso, deixo registrada minha passagem por aqui, já que você reclamou a falta de comentários. Olha, isso acontece.

    Beijo!

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  2. Muito bom o texto!!! Tao pegando pesado por ai né! Aqui também ta começando....limite de bebida, cigarro proibido, mas ainda nao tá como ai nao.

    Beijos

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  3. Essa situação generalizada anti boemia, Carlos, para piorar ainda mais,não é só aqui. Em Buenos Aires não se fuma mais, como aqui. Quem conhece essa incrível cidade, onde a noite é sempre criança, sabe que é absurdo que nos ótimos cafés de lá não se possa mais fumar. Como assim, não pode fumar no café Tortoni???? Não.

    Li outro dia uma matéria dizendo que Amsterdã, paradigma de noite e liberdade, está sofrendo um ataque conservador que tende a acabar com a tradição que sempre a fez famosa, com arrochos aos bares e à vida noturna.

    Enfim, a coisa tá feia, e além de feia, está se tornando mais e mais disseminada no mundo todo.

    abs
    Eduardo

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  4. Ah meus caros, terei de discordar de vocês.
    Concordo que a lei é um exagero, também acho,
    a questão é que política de hoje em dia é feita por leis e não por poesia, e isso é um problema.
    Mas o caso da nossa Juliana é totalmente comprensível por parte do senhor, ele ia comer, seria o minimo de gentileza da sua parte prestar atenção nas suas interferências no espaço público.´São normas de convivencia, não é moralsimo nem nada, quem acha que vive em live arbítrio é que vive uma falsa idealização. As regras sociais precisam ser respeitadas, para o alcançarmos o bem comum.

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