segunda-feira, 29 de março de 2010

Família

Amo minha família. E certamente a maioria das pessoas também ama a sua, sobretudo a chamada família nuclear. De um modo geral, pai, mãe e filhos se amam.
Acontece que ando farto – ou melhor, de saco cheio –, não da minha família, nem de alguma outra em específico, mas do conceito de família construído pela sociedade em que vivemos.
Isso porque, como alguns amigos devem saber, estou procurando um lugar para morar, e, após alguns meses de busca, ainda não consegui encontrá-lo, e o principal motivo da minha desgraça é a ideia de família que habita a cabeça das pessoas.
No final do ano passado, escrevi uma crônica inspirado pelo verso do Leminski “Quem vai embora não embolora”. Mas não imaginava, nessa época, o quão difícil seria levar a cabo esse projeto. Quero ir embora, tenho condições financeiras para fazê-lo, minha mãe já se conformou com a notícia, meu pai prometeu apoio, porém não consigo me mudar. Estou embolorando, caro Leminski, e o que posso fazer?
Constituir uma família. Se tivesse esposa e filhos, certamente já teria conseguido alugar um imóvel. Todos, proprietários, corretores, gerentes de imobiliárias, fariam questão de me ajudar, facilitar ao máximo os procedimentos burocráticos a fim de fechar negócio imediatamente. Acontece que não vou constituir família, não pretendo fazê-lo tão cedo, talvez nunca o faça. Aliás, ninguém tem nada com isso. Minhas escolhas sou eu que faço, na minha vida não preciso de ninguém para meter o dedo! Mas sempre que ligo para uma imobiliária para obter informações a respeito de um imóvel que está para alugar, tenho de dar satisfações sobre a minha vida. Não me justifico nem para o meu pai, que dirá para um corretor de imóveis!
Qual a sua renda? Tem carteira assinada? Faz o que mesmo?... Ah. E quanto está disposto a gastar com o aluguel? Por esse preço está difícil, para não dizer impossível... E o senhor pretende se mudar com a família?
Eis que a pergunta é feita, invariavelmente, mudando apenas a ordem em que aparece, de corretor para corretor. Se vou constituir família... E o que eles têm a ver com isso? Que problema tem em não querer constituir família? Não, não vou me mudar com a família. Pelo contrário, vou deixar a que tenho para trás.
O Gusta, o Cabelo, a Lia, o PR e eu estamos juntos nesse projeto há 3 meses, e ainda não conseguimos fechar negócio. Só aos poucos fomos descobrindo a principal razão do nosso infortúnio. Uma corretora um dia nos disse, numa visita que fizemos a um apartamento nas Perdizes, que os estudantes estavam muito malvistos na região; costumam gerar problemas no condomínio, atormentar a vizinhança, o que no limite acaba virando caso de polícia, uma baita dor de cabeça para o proprietário do imóvel!...
Ora, não somos estudantes: o Gusta e o Cabelo são pesquisadores da área de Ciências Sociais, a Lia já trabalha, o PR é professor e eu, formado, estou cursando a licenciatura e dando aulas também. Mas não adianta dizer que não é estudante quando se tem cara de estudante. Notei, nessa busca por um aluguel, que “estudante” é uma categoria bem ampla, que não abarca somente aqueles que estão no Ensino Básico ou cursando o Superior, como geralmente se pensa. “Estudante” tornou-se, ao menos no meio imobiliário, sinônimo de “jovem que ainda não tem uma vida economicamente estável”; e, o que é pior, “que ainda não constituiu família”.
Este é ponto principal: a família.
Quem não é de família gosta de festas, noitadas, não tem parceiro fixo, não tem responsabilidade, faz barulho, fuma maconha, atrai a atenção da polícia, é baderneiro, enche o saco, trepa alto, arrota na escada, rabisca no elevador, e tudo o que se pode imaginar de pior em um condomínio formado por famílias de bem. Além disso, quem não constituiu família ainda corre o risco de virar veado, e já pensou o inconveniente terrível que seria um casal de veados compartilhando o mesmo prédio com famílias de bem? Não estou exagerando. O namorado da minha mãe havia praticamente alugado seu apartamento para um homem de meia idade quando a corretora, impaciente, disse que tinha de fazer uma revelação, mas receando que por causa disso o negócio não desse certo. É que na verdade o inquilino iria dividir o apartamento com outra pessoa, um homem, seu companheiro. O namorado da minha mãe disse que para ele não haveria o menor problema. A corretora, constrangida, aliviada, mudou de assunto.
Quase fechamos negócio em janeiro, mas a proprietária – para quem não bastaram as garantias dadas por meio da documentação de fiador e locatários – achou-nos jovens demais para ocupar seu apartamento. Quem sabe não fosse o caso de abrir um processo contra ela. Pois o que aconteceria com o dono de um estabelecimento comercial (suponhamos uma loja de materiais de construção, em cuja fachada há uma placa dizendo “Aqui, vendem-se materiais de construção”); o que aconteceria com o dono dessa suposta loja se ele se recusasse a vender para quem é jovem demais, ou para quem é veado, ou para negros, ou para ex-presidiários, ou para quem não é de família?... Para mim, em ambos os casos trata-se de discriminação: tanto para quem vende mercadorias numa loja, quanto para quem põe um imóvel para alugar. Quando se quer alugar um imóvel, deve-se estar preparado para diversos tipos de constrangimento; analisa-se, primeiro, o corpo do locatário, suas roupas, de onde se apreendem inúmeras informações, inclusive sua classe social; levanta-se a ficha do locatário, para aferir se é devedor, se tudo está em dia, nos conformes, se trabalha formal ou informalmente... Tudo isso se verifica em detalhes, tendo em vista que o proprietário – este sim um vagabundo da pior espécie que não produz nada e vive de renda – quer saber se seu futuro inquilino é gente de bem.
E o que significa “ser gente de bem”? Na Sta. Cecília tive a infeliz oportunidade de ler, no hall de um edifício que fui visitar, uma placa que dizia: “Aqui só moram famílias. Por favor, respeite o ambiente familiar”. Que porcaria! Que hipocrisia! Em quantas famílias de bem há mulheres caladas, espancadas? Em quantas famílias de bem há crianças abusadas, agredidas, perseguidas e reprimidas pela autoridade incontestável do pai? Quem me responde?... Em quantas famílias ditas de bem, famílias ortodoxas, famílias ao pé da letra, cristãs, o lar para a mulher é uma prisão, e para o marido o maior tédio, e por isso tem de recorrer ao adultério? Quantas famílias não são infelizes, e poderiam ser felizes caso resolvessem pôr um termo a essa mentira?
A última corretora com que conversei me disse, em tom de confissão, que bolivianos são malvistos por proprietários do Bom Retiro – “roubam até os tacos do chão!” –, e também os coreanos – “porcos e maus pagadores!”. De jovem, “estudante”, então, se quer distância! República nem pensar!
E, por causa disso, continuamos, Gusta, Cabelo, Lia, PR e eu, procurando; ou, como diria o Leminski, embolorando.

Carlos Conte
SP 23-03-10

10 comentários:

  1. Pessoal, esse texto é em solidariedade a todos que estão no mesmo barco... Espero que sirva de consolo. Beijos a todos.

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  2. hahahaha muito bom!ter que dar satisfação da vida pra corretor de imóveis é mesmo o fim da picada hahahaha

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  3. Achei bem interessante carlão, vão ai alguns comentários de quem já passou por isso em campinas.
    As casas de campinas onde moraram estudantes estão, em grande parte, detonadas. Os estudante, em grande parte, não ligam para manutenção básica da casa. E os contratos de fiador não são garantia total para o proprietário, demoram anos e anos para ver a cor do dinheiro. Voce pode sugerir o seguro-fiador, que está "na moda", mas como tudo novo, é caro.
    Bom, quero dizer que, em parte, entendo o medo da corretora por estudantes. Pelo quarta vez vou repetir a expressão "em grande parte": as "famlias", em grande parte, cuidam melhor do imóvel. Então mesmo que não venham a pagar o aluguel, costumam deixar o imóvel em melhores condições, dando menos prejuizo. Em grande parte.
    Mas ai você pergunta duas coisas:
    1. Não faço parte dessa maioria que não cuida da casa!
    2. Não sou estudante!
    Minhas respostas:
    1. Voce não tem como garantir ao corretor e proprietário que vai cuidar da casa, eles não te conhecem. E talvez nem você, porque nunca morou nesta casa em que vai morar.
    2. Você foi estudante recentemente! É tudo que eles sabem de você. Ex-baderneiro, estatisticamente falando. Se alguem me diz que é ex-fumante eu sempre pergunto: a quanto tempo parou? Se me responde 6 meses é uma coisa, se me responde 6 anos, é outra.
    Minha intenção não é defendê-los, mas sim entênde-los (os corretores e proprietários). A visão é a mesma do seguro de carro, mais caro para pessoas de 18 a 25 anos, principalmente homens. Você corre? Dirige bêbado? Talvez não, mas estatisticamente sim. E paga por isso.
    Não da pra ter certeza, as pessoas sao diferentes. Na tentativa de entendê-las, olhamos para os grupos maiores. Você se deparou com um problema de ESCALA! Em grande escala, estudante e ex-recente-estudante é tudo a mesma coisa. Quanto mais olho de perto, vejo que não são. E se olhar individualmente, verei também que todos são diferentes. E muito diferentes.. O impressionante é que se olhar de longe vejo apenas uma coisa. Humanos! Pelo menos essa é a minha visão, de um ponto de vista fractal, caótico, mas algum padrão existe nessa confusão. Confuso o ponto de vista dos corretores? Sim. Totalmente ilógico, irracional, i... Creio que não.

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  4. Oi, Carlos!
    Tudo em ordem?

    Li seu texto e como também estou nessa fase cão da vida de procurar apê... Você esta procurando um ape de qtos quartos? tenho alguns telefones aqui e, de repente, podem te ajudar.

    Sou amiga do Theo, limpinha, moça de família. Pode confiar! hahaha

    bjo

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  5. grande carlão! parabéns pelo texto. Que merda essa sociedade que vivemos...Boa sorte nas buscas, não é possível que não consiga algo que vá contra essa hipocrisia toda...beijos
    Helena

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  6. Vivemos mesmo na sociedade das aparências. Morei um ano numa república quando comecei meu curso de geografia na unesp. Éramos vizinhos quase perfeitos (quase porque ninguém é perfeito, hehe)... Demos uma única festa esse ano todo, e fizemos questão de conversar com os vizinhos, avisá-los e até convidá-los para a festa... Éramos quietos, não usávamos drogas, estudávamos e a maioria das noites que passávamos em claro era à base de café estudando pra prova ou discutindo política, geografia, sexo e futebol... hehe... Já na casa de família que tinha ao lado, a mulher berrava bêbada e até batia no marido... o filho dela era metido com tráfico e uma vez mostrou um revólver para a gente... Na verdade, a nossa casa era bem mais "de família"...
    Agora, posso falar de um problema que tive com estudantes aqui em perdizes(esses sim, estudantes mesmo, de segundo ano de faculdade) que moram numa república em frente ao meu prédio... meu... eles são uns FILHOS DA PUTA... dão festa com som no talo até quatro da manhã, não querem nem saber, fumam maconha, berram, xingam moradores do meu prédio, etc. Logo, o caso virou caso de polícia, e eu mesmo fui atrás de fazer B.O. e como no meu prédio tem uma delegada a gente conseguiu dar um belo de um enquadro neles...
    Assim, tem famílias e famílias, estudantes e estudantes... Digo isso em apoio à sua causa... Quando você vai alugar um apartamento com outras pessoas jovens, ou seja, não em "situação de família cristã", tem de mostrar que realmente não vai tocar o puteiro, porque senão não vai conseguir... mostre que vocês não são estudantes e sim jovens em começo de carreira buscando tornar-se independentes, e não em busca de liberdade... e acho melhor não tentar mudar a cabeça de corretores de imóveis... hehe

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  7. Falamos disso em um outro dia e só hoje liguei o pc para ler o texto... Adoro seus textos!!!!
    Lembra que eu te falei que me deixava puta o fato de vc se foder, trampar pra caralho e ainda ter que ir pra faculdade e talz... tudo isso para garantir a sua independencia e no final... essa novela toda. Mas fica aí uma dica que funciona, deixa a gente puto, mas funciona... Na hora de fechar negócio, eu e a Amanda fingíamos que eramos só nós duas que iamos morar no local e chamavamos os nossos papais para nos acompanhar à imobiliária. É uma merda, mas dá certo... Depois rola um mal estar quando eles veêm a encrenca em que se metem, mas tá rolando grana... todo mundo acaba ficando quieto.
    Não esqueçam de averiguar a vizinhança, fujam de famílias de bem, esses núcleos são geralmente compostos por grandissíssimos filhas da puta, que sem nenhum motivo vão querer fuder com a sua vida. Quando mudamos para a Cotoxó, a Amanda estava trabalhando a noite e chegava as 4 da manhça (e ia para a facu no dia seguinte...) Acreditem ou não, o vizinho de baixo dava altos pitis por que o microondas e a pia faziam mto barulho quando ela ia comer e ele acabava acordando no meio da noite...
    Boa sorte amigos! Qualquer vaga aqui no paraíso Dona Ana Pimentel eu aviso (Dá-lhe Vila Country!)
    Beijos Leticia

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  8. Carlos! To começando a busca. Bom saber o que posso encontrar por aí. Belo texto. Beijo!

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