terça-feira, 14 de abril de 2009

Aula de Biologia

Finalmente larguei o lápis sobre a carteira, depois de responder às questões de biologia que o professor tinha passado. A sala estava cheia, e a maioria ainda se encontrava curvada sobre seus cadernos tentando terminar os exercícios. Sem nada para fazer, fechei o caderno e fiquei olhando para os colegas ao meu lado, reparando nos detalhes daquela cena matinal tão conhecida. Até que meus olhos pararam nela. A menina nova. Tinha mudado para aquela escola há uma semana apenas, vinda de intercâmbio na Europa. Na sala, silêncio. Ela ainda estava entretida na resolução dos exercícios, movendo seu braço direito, fino e delicado, em cuja extremidade havia dedinhos elegantes segurando um lápis cor-de-rosa. Ai, suas pernas, suas pernocas, ora cruzadas, ora juntinhas, de tão expostas que estavam pela saia curta, de tecido leve, arrepiaram-me os pelinhos da nuca. E o que dizer de seus pezinhos? Calçavam uma sandália atraente, de couro, que pouco cobria aqueles dedinhos brancos e roliços. Já tinham me falado dela – afinal, a molecada não perdoa carne nova –, mas só naquele instante me dava conta de sua beleza. Não dava para vê-la de frente, pois ela estava na fileira ao lado, algumas carteiras adiante, mas fiquei imaginando como seria acariciar seu umbigo, lambê-lo a meu modo, bem devagar. Aí ela tremeria de paixão, certamente, e cheia de instinto gingaria sua cintura magra, pedindo-me desesperadamente que aumentasse a intensidade de meus atos. Depois, suas costas. Seus cabelos. Estes dava pra ver. Moveria aqueles fiozinhos escuros com as mãos, ainda que insistissem em cair sobre seu rosto, e a beijaria violentamente. Seus lábios cansados, seu calor passando para meu corpo... Na minha imaginação, estávamos despidos; na cama; não, na cozinha; não, ali na sala de aula mesmo, eu segurando firmemente sua coxa, enquanto ela, ainda ofegante, ainda gemidos, descansava ao meu lado. No fundo, uma voz. Uma voz cortou todo aquele sonho colegial. Rouco, insistente, repetia a mesma palavra. Não, queria voltar àquela orgia!
– Você! Ei, você!
Despertei, a contragosto.
– Qual é o seu nome mesmo?
A voz vinha da frente, era real, e todos na sala olhavam para mim, inclusive a moreninha gostosa.
– Acorda, rapaz! Qual é o seu nome mesmo?
– Eu?!
– Não, eu! – respondeu o professor com ironia, despertando rizinhos na turma.
– É Carlos.
– Você respondeu às questões, Carlos?
– Respondi sim.
– Muito bem. Então venha aqui pra frente e leia suas respostas pra sala.
Acontece que aquela indecência tinha me deixado com problemas. Estava com “a barraca armada”, como se diz, depois de toda a perversão que tinha detalhadamente imaginado durante os últimos minutos. Em uma situação normal, nada disso seria problema. Mas aquela não era uma situação normal. Pelo contrário: era desastrosa! Estava sem cueca e de calça de moletom, meu Deus, se me levantasse agora todos veriam em que condição ridícula eu me encontrava. Insistente, o professor me chamou.
– Carlos, venha cá, estou te chamando!
– É que... É que, professor, eu ainda não terminei, melhor chamar outro...
– Bom... algo você deve ter feito. Venha cá e leia o que fez, não faz mal.
Estava suando. E nada do tarugo se acalmar. Ele, erguido, impávido, como uma bandeira hasteada lá no alto; eu, encolhido, medroso, pequenininho. Tinha de pensar em alguma saída rapidamente. Tínhamos que entrar num acordo, meu pinto e eu. O suor escorreu-me pela testa, alojou-se, gota a gota, na ponta do queixo, e inesperadamente caiu como bomba, uma baita de uma gota, bem no meio do caderno fechado. Na frente, o professor. Percebeu meu embaraço.
– Carlos, não tenha vergonha. Tudo bem se tiver respondido errado. Vocês estão na escola justamente para isso. Errar é aprender! Ou melhor, é errando que se aprende! Faz parte do processo de aprendizagem socializar as descobertas com os colegas. Vamos, Carlos! Venha cá, não tenha medo. Aqui todo mundo está aprendendo...
Enquanto isso, meu documento esmagava-se impiedosamente contra a calça de moletom. Aquilo era humilhante!
– Professor, não vou.
A classe, perplexa, me olhava. Foi quando fechei os olhos, firmei o pensamento...; se a causa de tudo estava na cabeça, então era da cabeça que viria a solução. Consegui, por alguns segundos, abstrair a realidade a minha volta, e concentrei-me o máximo que pude. Pensei na minha avó. Ela, gorda, acabando de acordar, de camisola, sua pinta cabeluda no braço, sua voz estridente me chamando. Mas meu pinto continuava o mesmo: ereto e indiferente. Depois pensei no cachorro que outro dia mandaram em casa para cruzar com a minha cadela. Que cena feia os dois copulando, de bocas abertas, ele por trás, castigando a pobre coitada, sem fôlego; credo! Só que isso também não serviu para espantar o meu tesão.
– Carlos, venha já! – gritou o professor, achando, provavelmente, que eu estava desafiando sua autoridade.
Gritou mais algumas coisas, nem conseguia enxergar ao redor, fui me levantando, com o caderno nas mãos, a sala em silêncio, revelando aos poucos o meu segredo, um bico sobressalente forçando o moletom. À medida que caminhava, caras, bocas, rostos, ficavam todos para trás, até que parei em frente ao professor, que me olhava calado. Uns riam, cutucavam outro colega, que ainda não havia percebido, de modo que o constrangimento gradativamente tornou-se geral. Mas ninguém me disse nada. Subi no tablado, virei de frente para a classe e me posicionei ao lado do professor. Pela primeira vez, olhei a turma toda. Os que estavam rindo uma hora ficaram sérios, talvez constrangidos em minha consideração, ao passo que eu estranhamente me tranquilizei. Abri o caderno, olhei novamente para a sala, senti-me forte, seguro, um homem! E antes de iniciar a leitura, pude ver, no meio da sala, a tal da moreninha, a provocadora de toda a cena. Olhava para meu rosto, para meu pinto; para meu pinto, para meu rosto, deixando aos poucos surgir um lindo sorriso, sem mostrar os dentes; um sorriso sensual.


São Paulo, 14 de fevereiro de 2003 (reescrita em 10-03-09).

Carlos Conte

terça-feira, 7 de abril de 2009

O mesmo

– Nossa, tenho medo do mesmo.
– Medo do mesmo?! – perguntei, intrigado.
– É... do mesmo... Pra você não dá medo também?
Já ia me preparando para uma resposta filosófica sobre o “mesmo”, o oposto do “diferente”, ou sei lá o que, ainda que não tivesse ideia do que dizer a respeito dessa afirmação maluca que a minha amiga tinha feito, quando ela, debochando, resolveu me explicar tudo:
– O mesmo... Esse aí que está escrito na plaquinha do elevador.
Ah, então era isso!... Bem mais simples do que havia imaginado. Questão de linguagem, não de filosofia. Minha amiga estava tirando uma onda com o aviso presente em todas as portas de elevador, em todos os pavimentos, dos edifícios da cidade de São Paulo: “Antes de entrar no elevador verifique se o mesmo encontra-se parado neste andar”. Duvido que alguém nunca tenha visto essa frase. Talvez seja uma das mais lidas pelo paulistano – e só pelo paulistano, uma vez ser essa advertência resultante da lei municipal nº 8596, de 11 de março de 1997. Não moro em prédio (continuo resistindo bravamente), mas sei desses detalhes porque, ao entrar no Google, e digitar só metade do período (“Antes de entrar no elevador...”), descobri, com surpresa, que há milhares de textos, entre crônicas, diários publicados em blogs, artigos, textos de revistas sobre gramática, cartas forenses, que tratam dessa frase curta, besta, feia, mal redigida, mas famosa, porque estampada nos elevadores de toda a cidade. Para ser mais preciso, o Google encontrou mais de 54.200 resultados para a minha pesquisa.
Claro que não li todos. Minha ideia, na verdade, nem era fazer pesquisa sobre o assunto. Só consultei o Google porque estou criando o hábito de fazer isso; qualquer coisa, desde letra de música até presente de amigo secreto, dou uma espiada lá no Google pra ver o que acontece. E, para o aviso do elevador, ele me deu de resposta essas dezenas de milhares de referências, que, em vez de facilitar, acabam até dificultando, pelo simples fato de que muita informação às vezes atrapalha.
Bom, mas não é do Google que pretendo falar. Mais especificamente, de um texto que encontrei nessa rápida, mas complexa, pesquisa. É de Josué Machado, jornalista autor de alguns livros, que escreveu um artigo para a “Aprendiz”, uma revista de educação. Lá ele analisa a famigerada frase do elevador do ponto de vista da linguagem, e faz considerações interessantes. Para que falar “Antes de entrar no elevador” se o aviso está colocado justo na porta do elevador? Bastaria dizer “Antes de entrar” que o leitor, morador ou visitante, entenderia. Segundo o jornalista, não é de se imaginar que alguém vá pregar uma plaquinha na porta do elevador alertando para alguma coisa que pode acontecer na garagem do prédio, por exemplo; “Antes de entrar na garagem...”. Isso nunca. Se o aviso está grudado ali, é óbvio que a porta de que trata é a do elevador, redundância que poderia ser evitada omitindo-se o lugar. Onde mais se entraria por aquela porta?
Outra coisa é a ausência da vírgula após uma “espaçosa oração inicial”, segundo Josué Machado. Ali, o certo seria pôr vírgula, mas o redator da frase ou se esqueceu ou não sabia que tinha que fazer isso. São tantos problemas de linguagem num texto tão curto que o jornalista se pergunta: “Terá muita gente trabalhado para alinhar as palavras do aviso (...)? Será que esses vereadores sábios não têm um redator levemente alfabetizado entre seus auxiliares?”.
Mas o problema maior é o indefinido “mesmo”. Esse ganha de todos! No Aurélio, diz que seu uso, como pronome, “parece inconveniente”, embora possa ser encontrado com facilidade na literatura, inclusive em autores consagrados. Penso que deveria ser proibido. Sim. Aproveitar que vão fazer o novo acordo ortográfico (em grande parte desnecessário, no meu modo de ver) e incluir o “mesmo” na lista; ou melhor, excluí-lo de uma vez por todas. “O homem de terno azul entrou lentamente pela porta. O mesmo levantou-se e ligou a televisão”. Por que não substituir pelo pronome “ele”? Não é mais simples? O escritor é pedante, quer falar difícil, e acaba cometendo a maior bobagem. Não soa legal. É de mau-gosto. É tão feio quanto votar nesses vereadores picaretas, que fizeram a lei que obriga a fixação do aviso na porta de todos os elevadores do município.
No final do artigo, depois de várias críticas, Josué Machado aponta algumas alternativas para a frase: “Antes de entrar, veja se o elevador está no lugar”. Mas assim não fica bom, porque rima – e o objetivo de um aviso, até onde eu sei, é avisar, não rimar. Talvez um jeito melhor de alertar os usuários dos elevadores seja dizer: “Não entre sem ver se o elevador está no lugar”; ou: “Só entre se o elevador estiver no lugar”; ou: “Antes de abrir, verifique se o elevador está no lugar”; ou ainda: “O elevador está no lugar? Então pode abrir”... Sei lá. Deve ser possível transmitir essa informação de muitas maneiras diferentes, sem cair em redundância, sem falhas de pontuação e sem ter de recorrer ao odioso “mesmo” como pronome.
Ora, mas eu mesmo não disse que há inúmeros textos que tratam desse assunto? Não falei há pouco que o Google fez uma pesquisa e me bombardeou com mais de 54.200 resultados? Por que escrever então sobre um tema tão batido? Para revelar que tenho motivos especiais, bastante pessoais, para não reclamar do “mesmo”. Apesar de concordar com todas as críticas feitas pelo jornalista, contraditoriamente afirmo que gosto do “mesmo”. Isso mesmo. Não precisa mudar nada. Sou a favor de sua permanência, por tempo indeterminado.
Minha amiga e eu entramos no elevador. E ela continuou seu raciocínio:
– Não parece que esse “mesmo” é uma pessoa?...
– Parece... – respondi dando risada.
Ela me disse que outro dia ficou viajando que o mesmo era um ser sobrenatural, um monstro, um espírito... "O mesmo". Será que ele está neste andar?... Olhei sorrindo para a minha amiga e elogiei sua imaginação. Verdade. O que deveria ser "O mesmo" na cabeça de uma criança de 7 anos? Certamente, muitas coisas horripilantes...
Chegando ao andar do seu apartamento, resolvi arriscar, e perguntei para ela: se não gosta do mesmo, por que não optar pelo diferente?... Olhamo-nos bem fundo; foi mesmo. Ela entendeu o que eu estava dizendo. É que essa amiga namora há 3 anos com o mesmo, o mesmo namorado. Chega do mesmo! Não é mesmo?
Abriu a porta do apartamento, sem dizer nada, jogamos nossos materiais de estudo no chão (materiais que usaríamos para o trabalho de dupla da faculdade), e decidimos que naquela tarde não estudaríamos, mas ousaríamos sair do mesmo: curtir o diferente.