domingo, 29 de março de 2009

As seis mulheres e a bibliotecária

Quando estou com dificuldade para escrever minhas crônicas, recorro à biblioteca que tem perto de casa, a Biblioteca Municipal Cecília Meireles, que considero meu refúgio. Não porque lá encontre referências do gênero, nem teorias literárias sobre a estrutura ou a história da crônica brasileira; trata-se de biblioteca infanto-juvenil, onde posso achar “O Santinho”, do Luis Fernando Veríssimo, ou “O Sorvete e outras histórias”, do Drummond. Se vou até lá, portanto, não é para procurar inspiração nos livros, mas porque o próprio espaço – sempre tranquilo, amplo, arejado, silencioso, mesas grandes, corredores aconchegantes – oferece-me o que há de melhor para a atividade de redigir. Nunca vejo crianças, embora o lugar tenha sido feito para elas.
Certa vez, quando me faltou inspiração e pedi socorro à tranquilidade da biblioteca, seis mulheres se instalaram indiscretamente na mesa ao lado da minha.
– Nunca mais vou ao dentista em véspera de feriado!... – falou indignada a que estava de costas para mim.
Nesse momento, olhei para a folha em branco, para a ponta do lápis ainda intacta; busquei concentração nas árvores do jardim, que via através da porta de vidro, querendo que minha crônica surgisse de algum lugar.
– ... O dente do canal infeccionou e me doeu o feriado inteiro! Nem deu pra aproveitar...
As seis mulheres, todas com mais de 50 anos, simplesmente papeavam. Podiam estar num supermercado. Ou na manicure. Ou no cabeleireiro. Ou até mesmo na feira. Com certeza há muitos lugares em que aquelas seis mulheres seriam apenas seis mulheres, seis donas-de-casa, seis esposas, seis mães de dois ou três filhos, seis moradoras da Vila Romana, ou Vila Ipojuca, ou Bairro Siciliano, em cujas residências há carne seca esperando de molho, e o jantar todo por fazer. Da Cerro Corá ao Mercado da Lapa, poderiam estar em qualquer canto, tudo permitido, e seriam somente mulheres comuns. Mas naquela biblioteca transformavam-se em pessoas malvistas, indesejadas.
Além de nós, não havia mais nenhum frequentador àquela hora. Senão esperaria (como sempre faço) que outro incomodado se levantasse, caminhasse até o grupo e pedisse pelo fim do falatório. Acontece que o único aborrecido naquela sala era eu! E, confesso, faltou-me coragem para tomar uma atitude... Bateu-me a timidez, não sei como explicar... Era como se não tivesse direitos (embora estivesse com a razão); senti-me “menor”, com a auto-estima lá embaixo, diante de seis mulheres mais velhas e amedrontadoras. Que as duas funcionárias tomassem uma atitude. Ora, é o mínimo que se pede a um funcionário de biblioteca, que saiba ao menos a localização dos clássicos e que zele sempre pelo silêncio do ambiente de estudo. Só que em vez de exigir silêncio, a bibliotecária que datilografava (detalhe: lá ainda se usa máquina de escrever!), como se não bastasse o tormento das marteladas de sua datilografia, decidiu levantar-se, puxar uma sétima cadeira e sentar-se com as seis, somando-se à bagunça. Agora eram seis mulheres e uma bibliotecária.
– Vocês lembram da Sônia?... – começou a falar a nova integrante do bando. – Pois é, coitadinha... Teve hidronefrose, segundo me disseram, líquido nos rins!
Uma porção de caretas. Ó, que horror deve ser isso! Como é o nome mesmo?... “Hidro...”. Pelamordedeus. Minha Nossa Senhora! Quanto mais difícil o nome, pior a doença. E curou? Ah, curou, graças a Deus. Mas sofreu? Tadinha...
– Menina! – emendou uma outra. – Pedra nos rins foi o que teve o meu cunhado, o Vanderlei, dono da drogaria do Lgo. Tito. Coitado do homem! Dava dó quando ele ia no banheiro... Chegava a rasgar o canal do rim, e saía sangue! Depois os médicos foram descobrir que tinha pedra do tamanho de uma azeitona, imagina?
– Nossa! Do tamanho de uma azeitona, Nena!
Nena respondeu afirmativamente. É daquelas mulheres trágicas, que gostam de impressionar. Enquanto falava da desgraça alheia, as outras permaneciam absorvidas pelas imagens terríveis que seus dentes escurecidos forjavam em contato com a língua. Daí eram caras, mãos tapando bocas, olhos esbugalhados...
– ... Meu pai... – continuou – ... meu pai tem três rins, vocês sabiam?
Nesse momento, até eu me esqueci da folha em branco e me virei para olhar na cara da mulher: três rins?!
– Três!
E não tira por quê? Afinal, tem tanta gente que precisa... na fila de doação de órgãos há meses, há anos... Que falta lhe faria esse rim a mais, poxa vida? Se eu tivesse três rins, ou três pulmões, ou até três pernas, quem sabe, com certeza mandaria arrancar o excedente e levaria como doação ao Hospital das Clínicas. Quase me levantei e disse isso àquela mulher.
– Ué, e vocês acham que o meu pai nunca quis tirar? Quis sim, quem não concordou foi o médico. Disse que era perigoso demais operar, que não valia a pena... Na minha opinião, se tem a mais, é porque é vontade de Deus. É ou não é?
É! Lógico que é! Claro que é! Fez o coro geral.
– Então, né, gente, que mal tem?... Meu pai tem três rins, tem gente que tem seis dedos, e ninguém ganha nada com isso. Só a turma que se assusta um pouco quando a gente conta, mas não tem por que se assustar.
Terminado o relato chocante, outra senhora comentou:
– Para pedra nos rins, Coca-Cola com suco de abacaxi.
Eu que sempre achei que Coca-Cola fizesse mal... Anotei no caderninho.
– Tomate. Água com gás.
– Ah, isso é que é bom: água com gás!... – exclamou a que estava mais afastada da mesa, de pernas esticadas, quase deitada na cadeira, como se estivesse numa sala-de-visitas.
– É verdade. Água com gás dizem que é bom mesmo.
E quando pensei que não houvesse mais nada para se discutir em matéria de rins, uma disse:
– Já o meu médico não deu receita nenhuma!
– Está brincando! Que médico é o seu?
– O Dr. Nelson, do lado de cá da Pio XI...
E a conversa se seguiu por mais alguns minutos. Tentei recolher o que havia restado da minha concentração espedaçada, mas redigir naquela tarde havia se tornado impossível.
– Que preguiça, hein? – bocejou uma.
– Tenho que pegar meu neto na escola.
– Vou perder a novelinha.
– O mercadinho ainda está aberto?
– Um beijo, bom descanso!
– Um beijo pra todas, até!
Saíram. O silêncio voltou à biblioteca. A bibliotecária retomou suas atividades em frente à máquina, e olhou para o relógio, esperando pelo fim do expediente. Tem vezes em que a crônica não está onde se procura; mas, ao contrário, é ela quem persegue e toma o cronista à força. Eram aquelas mulheres, com quem na verdade sempre convivi, as donas-de-casa aqui do bairro da Lapa.

São Paulo, 16 de fevereiro de 2009.
Carlos Conte