sexta-feira, 31 de julho de 2009

Meditações sobre o Rio Pinheiros

Em cima da ponte, cozinhando ao sol do meio-dia, as pessoas esperavam. Imaginavam. Só aceitariam ir embora dali se tivessem certeza: os bombeiros encontrariam alguma coisa? Espremiam-se, inquietos, no parapeito da ponte, uma grade de mais ou menos um metro de cor verde, de onde se via praticamente nada. De fato, era difícil ver alguma coisa daquela ponte. Alguns tentavam se equilibrar na ponta dos pés; outros chegavam a se debruçar no peitoril, pondo metade do corpo pra fora. Diziam que o melhor lugar era lá embaixo, na beira do rio, mas já fazia alguns minutos que a polícia havia impedido o acesso. Tinha gente afirmando ter visto tudo na hora:
– Foi rápido: olhou pros dois lados e pulou...
– Quem? Os dois?
– Não, só um. O outro já tinha ido.
– E você fez o quê?
– Nada, vai fazer o quê?... E o pior é que o primeiro errou a mira: caiu fora do rio!
– E o outro?
– Esse caiu na água, bem no meio, deu até pra ouvir o barulho...
– E era novo?
– Qual?
– Sei lá, o que você viu...
– Era novo sim.
– Novo quanto?...
– Entre 30 e 35, eu acho. Tava de calça jeans e camisa branca.
– E foram lá pra baixo...
– Foram. Infelizmente.
– Isso aí é depressão, meu. Deve ter batido um desespero ferrado pro cara tomar coragem de fazer uma bobagem dessas.
– Às vezes é porque tá desempregado.
– Ou porque tomou chifre da mulher.
– Que nada! Dois chifrudos de uma vez só?!
– Eu não duvido não... Tá virando a coisa mais normal. Lá na vila mesmo, esses dias, teve um que pôs a mulher pra fora porque descobriu que tava sendo traído.
– Quem?
– O Valter, irmão do Vander, filho do Juca, marceneiro...
– Não conheço.
– Claro que cê conhece, meu!
Enquanto isso, mais uma ambulância do resgate aproximava-se do local. O barulho das sirenes e a movimentação crescente dos bombeiros lá embaixo despertaram novamente a atenção de todos. E ficamos em silêncio. Os carros diminuíam a velocidade ao ver aquele povo aglomerado na ponte. Devido ao calor, o rio exalava seu cheiro. Um cheiro úmido, cansado, escuro. Cheiro industrial. Cheiro de gente, coisa de todos nós que ali esperávamos. Aquilo é nosso, aceitemos ou não. Em baixa velocidade, carros dos mais diversos passavam ao nosso lado, já formando fila, certamente trazendo consequências ao trânsito em outras ruas. Nós, o pardo aglomerado, assistíamos atentos aos bombeiros trabalhando de barco na água lodosa. Tinha parado no meio do caminho para acompanhar, junto de centenas de curiosos, a aflitiva ação do resgate cortando as águas de lado a lado. Víamos, na água preta, quase água, o reflexo de nós mesmos, parados, debruçados sobre o rio, que não tem culpa, mas sofre. Já está acostumado a ser depósito daquilo que temos de pior. É onde a cidade despeja seu lixo, e não por coincidência o lugar em que aquelas duas pessoas resolveram se atirar. É refúgio do desespero. Caminho que corta a cidade. Paciente, nos observa, nos suporta. Melhor se fizesse outro caminho, e não se impregnasse de nossa sujeira.
Isso aconteceu no Rio Pinheiros. Mas acho oportuno citar uma estrofe das meditações de Mário de Andrade sobre o Tietê:

“A trágica sina do rolo das águas se dirige
O leito impassível da injustiça e da impiedade.
Ondas, a multidão, o rebanho, o rio, meu rio, um rio.
Que sobe! Fervilha e sobe! E se adentra fatalizado, e em vez
De ir se alastrar arejado nas liberdades oceânicas,
Em vez se adentra pela terra escura e ávida dos homens”.