terça-feira, 19 de maio de 2009

Pinga

Brincavam com meu finado avô que o único médico de que ele gostava, e nunca reclamava, era o oftalmologista, porque em vez de exames penosos e privações a que geralmente os pacientes são obrigados a se submeter, as recomendações do oftalmologista são simples e prazerosas: pinga 4 vezes pela manhã, pinga 6 vezes à tarde, pinga antes de dormir... Mas meu avô não gostava nada dessa piada, dizendo que nunca foi de pinga, só vinho após o jantar e uísque nas comemorações.
Há 15 dias passei por consulta no oftalmologista da família, o mesmo que operou meu avô da catarata. Apesar de nunca ter tido problema nas vistas, ultimamente venho sentindo um pouco de dor de cabeça durante minhas leituras. Fui saudado, logo que entrei na sala, pelo Dr. Puleghini, emocionado em saber que o neto leva o mesmo nome do avô, e fez questão de evocar as qualidades do Carlos falecido – “Homem de caráter!” –, já que não se fala mal de quem morreu. Em seguida, examinou-me na cadeira; encostou a máquina na minha testa, mandou-me ler alguns números projetados na parede branca e, após analisar meus olhos de perto, encaminhou-me à secretária, que, sem ao menos se apresentar, tomou meu rosto com suas mãozinhas e mandou ver colírio. De modo que, em dois minutos, não era possível nem enxergar a capa da revista Caras na sala de recepção.
– É que tem que dilatar as pupilas – ela disse. – Depois de 3 horas o efeito passa.
Alguns minutos mais tarde, como se não bastasse o estrago da primeira dose, a secretária bonitinha, agora uma figura abstrata sem contornos nítidos, veio com mais uma sessão de pinga-pinga ni mim, inundando meus olhos e molhando meu rosto. Agora estava embaçado! Voltei meio bêbado à sala do Dr. Puleghini, onde a sequência de exames se repetiu. Resultado: não existe grau em nenhuma das minhas vistas, e talvez o motivo das dores de cabeça seja excesso de leitura. Saudosista, o doutor me abraçou apertado – “Trabalhador que nem o avô!” – e me conduziu à recepção, onde a secretária bonitinha me disse “tchau”, antes que eu saísse pela porta da frente.
Lá fora, meio-dia, o sol assassinava. A tarde mais clara do ano, certamente, só porque eu estava sozinho na rua com as pupilas dilatadas. Agora a piada da pinga tinha sentido completo, pois os efeitos daquele colírio na minha cabeça podiam ser comparados a cinco doses bem servidas de 51. Só era possível olhar para o chão embaixo dos meus pés, nada mais; assim fui caminhando pela sombra das marquises das lojas sem poder fixar o caminho a minha frente. Encostei-me num poste. Não conseguia abrir os olhos.
– Será que alguém pode me ajudar? – perguntei para a calçada lotada do centro comercial da Lapa.
Repeti a súplica, mas não obtive resposta. Talvez precisasse falar mais alto. Lembrei-me do telefone celular que tinha deixado carregando no meu quarto. Pensei em retornar ao consultório para telefonar para alguém, mas cego do jeito que estava me senti inseguro para dar meia volta e refazer o caminho. Nem sabia direito onde estava. Resolvi seguir por conta própria; mas como faria para atravessar a rua? Que vida difícil deve ser a dos ceguinhos; não menos dramático, envelhecer numa metrópole como esta. Uma tarefa tão simples, tão complicada: precisava transpor a via pública. Fui tropeçando nas pessoas que aguardavam o farol fechar, um bolinho de gente desconhecida, gente sem corpo ou fisionomia. Até que alguém comentou lá do meio:
– Olha esse aí, ta bêbado ou ta drogado.
Como eu queria poder enxergar a cara de quem disse isso.
– Escuta aqui, não bebi nada não!
Mandei o fulano cuidar de sua vida. Veja se tem cabimento ficar falando dos problemas dos outros! Ajudar ninguém ajuda.
– São os meus olhos... Não to enxergando nada. Foi o médico. Ou melhor: foi o colírio que o médico mandou pingar nos meus olhos e não to vendo um palmo na minha frente... Bêbado nada! Bêbado é o seu pai, a sua mãe... A sua mulher! Vai te catar! Ta ouvindo?
Mas ninguém estava ouvindo. Enquanto falava, a galera já tinha se mandado para o lado de lá da rua, e eu fui atrás, sempre olhando pro chão, até que encontrei uma sombra para aliviar minhas vistas. Poderia ir atrás de um orelhão, tentar pedir ajuda novamente, ou até mesmo esperar o efeito passar. Da sombra, era possível enxergar melhor os arredores. Permaneci quieto, ouvindo o rumor da multidão consumidora. A solução estava próxima, tinha certeza, já que ninguém conhece aquele pedaço tão bem quanto eu. Havia uma loja de 1,99 ali pertinho. E, corajoso, caminhei na direção que julgava ser a certa, vendo através da claridade ardida uma sequência de nomes, anúncios, propagandas: estava desbravando. Até que consegui adentrar a loja e me dirigi ao vulto que julguei ser o da atendente.
– Óculos escuros, por favor!
4,99?! Faz tempo que essas lojas de 1,99 não são mais lojas de 1,99. Mas naquele momento desesperado daria meu reino por aqueles óculos, que nem a famosa exclamação de Paulo Mendes Campos sobre os pentes. Paguei, feliz, pelos meus óculos de plástico, e ganhei a calçada novamente, onde tudo parecia novo e fácil. Cheguei a pensar em retornar à clínica para reclamar do absurdo de se permitir que um paciente sem nenhum acompanhante saia na rua nessas condições. Mas quer saber?... Preguiça de brigar. Deixa pra lá. Tomei meu ônibus.
Diferentemente do meu avô que, segundo dizem, ao menos gostava de oftalmologista, afirmo que a partir de agora não gosto de nenhum tipo de médico, muito menos desses que cuidam dos olhos. Prefiro a pinga de verdade, que dá no alambique, e é fornecida aos bares da cidade, porque os efeitos do pinga-pinga do colírio podem ser muito mais perversos.

Carlos Conte
São Paulo, 27 de fevereiro de 2007 (reescrita em 03-03-09).

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