terça-feira, 26 de maio de 2009

Ela

Enquanto ela descia, eu subia a Av. Angélica. Ambos andávamos rápido, mas pude observá-la mesmo assim: uma moça bem bonita. Pena que nos encontramos ao acaso, no meio da rua, não em ocasião mais favorável. Fico pensando na quantidade de moças bonitas iguais àquela que cruzam diariamente o meu caminho. E acho isso um desperdício. Mas também ninguém é louco de sair atrás das pessoas que passam na rua, ainda que seja somente das moças mais bonitas... Foi o que fiz: dei a volta, contrariando minha autocensura, e comecei a descer a Av. Angélica, sentido centro.
Apressei-me para vê-la de perto: usava calça jeans apertada, que lhe marcava as coxas, cós baixo, as nádegas grudadas no tecido, o jeans descia apertado até o tornozelo, e sandálias de salto lhe conferiam altivez. Para frente e para trás, seus braços não fugiam muito do corpo. Caminhava com segurança, o tronco retinho, mas a cintura rebolando demais. Fiquei imaginando o ritmo dos seus seios naquela blusinha vermelha de alça... Talvez estivesse indo fazer compras. Ou procurando uma clínica médica para passar por consulta, já que existem várias nessa região. Só trazia consigo uma bolsinha preta, onde cabem dinheiro, documento e batom.
Ela atravessou a rua, entrando na Sergipe. Seria estudante do cursinho? Quem sabe uma menina de fora, do interior, de Santa Catarina, do Rio, preparando-se para o vestibular. Mas não demonstrava nenhuma incerteza, não parecia perdida, não parecia de fora. Determinada, passou pelas sombras antigas das árvores, ignorou a fachada do cursinho e parou na beirada da Consolação esperando o sinal. Pela primeira vez, ficamos lado a lado. Quase toquei seus dedos. Senti seu perfume. Uma menina de ombros durinhos, certinhos. Mas o farol não demorou para abrir, atravessamos. Descemos juntos a Consolação, ela sempre na frente.
O que estava fazendo ali? Tinha que tomar um ônibus lá em cima, na Dr. Arnaldo; em vez disso, descia, insistia no caminho inverso... Até onde teimaria com aquela loucura? Até onde ela me levaria? Quem sabe ao seu apartamento. Talvez planejasse passar a tarde em casa, descansando, para sair à noite com uma amiga para bater-papo. Mas e se fosse casada, namorada?... As chances eram grandes; afinal, uma moça bonita igual àquela não é de ficar sozinha. Por um instante, considerei-me ridículo, e a minha perseguição, inútil. Mas viramos lá embaixo, na Dona Antônia de Queiroz.
Foi quando, enfim, ela me percebeu. Pelo menos olhou para trás umas três vezes antes de entrar na padaria. Nesse momento, quase desisti, larguei tudo, de tanta vergonha, mas aquela história merecia um desfecho mais interessante. Entrei também na padaria, sentamo-nos juntos ao balcão, eu de expresso, ela de café com leite. Agora nossa relação havia se tornado escancarada. Não havia mais o que esconder. Ela sabia que eu a estava seguindo; eu sabia que ela tinha percebido tudo. Primeiro, olhou-me com curiosidade no meio de um gole quente. Depois, achando graça, deu um sorriso, mexeu os cabelos para trás, tudo de propósito. Nosso contato era inevitável. Mas antes de qualquer iniciativa, ela se levantou, pagou com moedas e voltou para a calçada.
Incrível como não precisamos de muito esforço para encontrar o extraordinário no nosso cotidiano. Tinha me desviado do caminho de casa há uns 25 minutos. Agora o que seria da minha tarde, do meu dia, da minha vida? Esperava a melhor recompensa por esse meu ímpeto de rebeldia. Sentia-me dono do meu próprio destino, ao mesmo tempo em que caminhava na direção de um lugar indefinido. Viramos na Rua Augusta. Atravessamos na faixa. Paramos na frente de um sobrado antigo, onde reluziu um molho de chaves. Ela me olhou e disse, com ternura, que tinha gostado de mim. “Um gatinho”, ela falou, aproximando-se, quase beijando...; mas só iria comigo, se quisesse, dali meia hora, porque tinha que tomar banho e se aprontar. Que eu esperasse, era bem rapidinho. Sessenta reais. Logo viria me buscar. Mas não esperei que ela voltasse; afinal, estava longe de casa e não tinha sessenta reais.


Carlos Conte
São Paulo, 26 de maio de 2009.

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